Diário dos Açores

Bellis Azorica - a série de livros açorianos em tradução nos EUA

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A comunicação social e as redes sociais ecoaram a notícia do lançamento oficial da Bellis Azorica, uma série de livros açorianos em tradução para inglês publicada pela Tagus Press, associada à University of Massachusetts Press. Infelizmente, muita da informação a circular é incompleta, descontextualizada ou mesmo deturpada.
A iniciativa de traduzir obras literárias açorianas para inglês tem já cerca de 40 anos. Quando em 1980 criei a editora Gávea-Brown no então Centro de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown, hoje Departamento, o panorama editorial de obras portuguesas nos EUA era limitadíssimo e, no que respeita a obras açorianas, mesmo nulo. Com efeito, nenhum autor açoriano estava traduzido em inglês. A Gávea-Brown não se dedicava exclusivamente à tradução de autores do arquipélago, contudo teve desde o início a intenção de incluí-los no seu programa editorial. Surgiram assim as traduções de Mau Tempo no Canal, de Nemésio; Pedras Negras, de Dias de Melo; duas antologias de poesia açoriana (The Sea Within e Voices from the Islands); e ainda A Viagem Possível, de Emanuel Félix. Mas editámos também muitas obras da literatura portuguesa, desde Fernando Pessoa a Miguel Torga. E até publicámos Camilo Castelo Branco – Amor de Perdição - pois Camilo até então nunca tinha sido traduzido para inglês. A intenção era sermos supletivos: publicar obras com valor, mas que não haviam atraído as atenções das grandes editoras norte-americanas. Poderia contar-vos aqui muitas histórias, uma delas por sinal bastante significativa. Durante 15 anos, a tradutora Rebecca Catz não conseguiu que alguma editora aceitasse publicar a sua tradução da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, em que tinha trabalhado grande parte da sua vida. Desesperada, já avançada em idade, entregou-me o manuscrito dizendo-me: Deixo-o nas suas mãos; publique-o na Gávea-Brown, se assim entender.
Ora eu achava que uma obra daquela envergadura deveria sair numa grande editora e seria capaz de cativar o público norte-americano. Evitarei pormenores. Entrei em contato com a University of Chicago Press e, com o apoio da Gulbenkian, a obra foi publicada e em pouco tempo atingiu a terceira edição, tendo recebido excelentes críticas incluindo na New York Review of Books.
Mas saltemos para o presente: quando o Mario Pereira, da Tagus Press, me convidou para coordenar a série açoriana Bellis Azorica, aceitei imediatamente. Não faz sentido haver duas editoras dedicadas às letras portuguesas e apenas a 40 km uma da outra. Agora, que estou a pouca distância da aposentação, a fusão acaba tornando-se realidade pois tenho colaborado com a Tagus Press também nas suas outras séries – a de literatura portuguesa e a luso-americana. Deste modo, mesmo durante a aposentação, se a saúde o permitir, continuarei a apoiar este projeto editorial.
Não é grande a rede de tradutores capazes de bem traduzir obras de literatura portuguesa para inglês. Os poucos existentes são muito solicitados e têm de ser pagos. Já lá vai o tempo em que voluntários se sacrificavam por amor à causa empenhando-se nesse labor. Foi assim com todos os tradutores da Gávea-Brown. Excetuadas as reedições que a Tagus Press está a levar a cabo das anteriores edições da Gávea-Brown, os tradutores atuais faturam e têm direito a isso pois a tradução de um livro é trabalho longo e penoso que não se coaduna com amadorismos. Nos EUA, é mesmo uma atividade profissional compensada segundo uma bitola bem mais elevada do que a portuguesa.
Felizmente temos tido alguns tradutores muito bons. George Monteiro infelizmente já nos deixou, ele que traduziu muitos poetas açorianos, em particular Pedro da Silveira, de quem também traduziu gratuitamente o volume há pouco editado pela Tagus Press. Foi igualmente o responsável pela recolha de todas as traduções para inglês da poesia de Antero de Quental, que será a nossa próxima publicação, ainda este ano. Mas temos outros tradutores em grande fase de atividade. Um deles é o Professor David Brookshaw, da University of Bristol, Reino Unido, tradutor de Mia Couto e, para a Bellis Azorica, de As Ilhas Desconhecidas de Raul Brandão, bem como do primeiro volume de Raiz Comovida de Cristóvão Aguiar, a ser editado muito em breve. Será também ele a traduzir uma seleção de entradas de Era Um Vez o Tempo, o diário de Fernando Aires. Temos a colaboração de uma tradutora de ascendência açoriana (da ilha das Flores), a Katherine Baker, responsável pela tradução, entre outras obras, de Sorriso por Dentro da Noite, de Adelaide Freitas, e de Descobri que Era Europeia, um livro de Natália Correia, diário da sua viagem aos Estados Unidos em 1950. O poeta luso-americano Scott Edward Anderson está a terminar a tradução de Corsário das Ilhas de Vitorino Nemésio. Não temos por enquanto na nossa lista nenhum livro de João de Melo, pela simples razão de que a versão em inglês do seu romance O Meu Mundo Não É Deste Reino foi publicada pela Aliform em 2003, e a Tagus Press publicou em 2015 Gente Feliz Com Lágrimas, tradução de Elizabeth Lowe, com prefácio meu, antes de existir a série Bellis Azorica.
O nosso projeto editorial, tem o apoio consultivo de Vamberto Freitas, Urbano Betencourt, Diniz Borges, Victor Rui Dores e Maria do Rosário Girão.
Todo este trabalho é pro bono e o apoio que o Governo Regional dá a esta série destina-se exclusivamente a pagar as traduções. Porque a notícia desta ajuda do Governo Regional provocou algumas críticas e, por isso, será bom tornar público alguns dados.
Primeiro: como atrás referi, a edição de livros açorianos em inglês não começou agora. Durante décadas ela aconteceu na editora Gávea-Brown, por mim criada e dirigida, sem qualquer apoio do Governo dos Açores. A presente iniciativa é um salto para uma intervenção editorial de maior dimensão, visando recuperar os livros já publicados na Gávea-Brown e alargar a série. O investimento principal é da Universidade de Massachusetts Dartmouth e do Governo de Massachusetts. O subsídio do Governo Regional dos Açores é mínimo quando comparado com o orçamento total da Tagus Press. E foi solicitado como valor sobretudo simbólico, a fim de se demonstrar à Universidade e ao Estado de Massachusetts que a nossa iniciativa era reconhecida e apreciada pelos Açores. O investimento do Governo Regional, embora não desprezível, constitui, repita-se, apenas uma pequena percentagem do orçamento envolvido na edição das obras. Nem chegaria para custear as traduções se todas tivessem de ser pagas.
Acresce ainda o facto de haver um outro valioso retorno para os Açores: os livros são oferecidos a editoras açorianas para que os imprimam aqui e distribuam, a fim de serem colocados ao alcance dos turistas interessados. A Letras Lavadas já editou quatro deles e a Companhia das Ilhas, das Lajes do Pico, em breve editará outro (Pedras Negras de Dias de Melo).
Devo acrescentar que nunca ganhei um centavo com estas edições; pelo contrário: eu próprio custeei muitas das despesas. Mas não vou entrar nesse capítulo.
A importância de tornar acessíveis ao mundo anglófono obras da literatura e cultura açorianas (está em preparação uma História dos Açores, encomendada a J. G. Reis Leite, que depois será traduzida para inglês e inserida na coleção) é enorme. O interesse por livros em inglês de temática açoriana é significativo. É verdade que não se trata de uma procura massiva mas, como em tudo na vida social, há pirâmides e, neste caso, existe um núcleo exigente que pretende ir além do consumo de guias turísticos. Se os Açores não querem entrar pelo turismo de massa por desejarem proteger a sua natureza e o seu tipo de oferta, devem aperceber-se de que há algo mais a fazer do que mostrar as Furnas e as Sete Cidades aos turistas. Há que ser coerente e procurar meios de se atrair o visitante exigente, culto e informado que vem apreciar a beleza da terra e da vida local procurando não perturbar nem uma nem outra.
A propósito de traduções, temos sido abordados por vários autores mais jovens e temos respondido a todos de modo idêntico e consistente: lá havemos de chegar. Primeiro há que divulgar os clássicos, os autores do cânone açoriano. Depois, pouco a pouco, iremos aos mais recentes. É de facto bem mais fácil atingir um consenso relativamente aos autores falecidos e, de entre os vivos, aos das gerações mais velhas. Mas há hoje nos Açores valores novos que já deram provas cabais de qualidade, merecendo ser a seu tempo devidamente contemplados. Os Açores continuam um viveiro de escritores (roubo o termo a Nemésio) e já não apenas de poetas, mas de romancistas de gabarito.
O nosso objetivo é simplesmente divulgar os livros da Bellis Azorica, tornar a série conhecida, lembrar que os livros podem ser uma boa oferta para os estrangeiros que nos visitam e sugerir aos poderes políticos que usem a sua influência para fazer chegar esses livros aos hotéis açorianos, às casas de alojamento local, aos AirBNBs. Os Açores têm de ser vistos lá fora como um paraíso onde a chuva pode tomar conta das férias e, porque há que inventar modos de preencher o tempo, pode a leitura ser um deles. O nosso turismo deve procurar atrair gente que adora a natureza e não se deixa vencer pelos elementos - o tipo de pessoas que sabe vingar-se da chuva enconchando-se num canto a ler um bom livro açoriano em tradução.
Quando os turistas estrangeiros estiverem retidos nos seus quartos ou na sala de um hotel, podem muito bem beber um Terras de Lava, um licor de maracujá ou um chá da Gorreana ou do Porto Formoso, e deliciar-se a contemplar os Açores através dos seus escritores graças às traduções inglesas que agora estão disponíveis. Ficarão a perceber melhor o íntimo destas belas terras azóricas, quando entenderem que a lava, os vulcões, a chuva e os abalos de terra são elementos constituintes destas ilhas – da sua natureza mas também da cultura - e que gostamos de receber estrangeiros que sabem apreciá-las como elas são e senti-las como os locais as sentem.
E essa possibilidade, não esqueçam, deve-se muito ao denodado esforço de uma mão cheia de açorianos na diáspora que trabalha por amor à causa, sem qualquer remuneração ou interesse pessoal.

Onésimo Teotónio Almeida *

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