Quando um homem está triste, um homem também é uma ilha.
– Alexandre Borges
Lembras-te do senhor Gil, Emanuel? De pé, por trás do balcão, o sorriso franco e humilde, a luz do teto a refletir nas lentes dos óculos?
- Desculpe, senhor Gil. Não tenho dinheiro comigo neste momento mas gostava de levar este livro.
- Não há problema. Leve que eu aponto.
Ele tirava o livrinho de notas e escrevia com o vagar de sempre. Lá saiamos com a dupla satisfação de levarmos o livro e sabermos que ele confiava em nós.
– Lembras-te?
Que tempo era aquele, Emanuel? Que bondade? Que ilha sem reservas? Tudo tão simples e significativo.
Hoje, ao passar frente à Livraria Gil, numa artéria agora sem o trânsito automóvel, acossou-me um forte sentimento de perda. Tivesse meios e faria daquele espaço uma galeria de arte honrando aquele tempo, quando a juventude caminhava junto dos sonhos. Homenageava assim o senhor Gil, o sorriso, escondido nos vidros da livraria sob o baço reflexo da luz de Setembro.
Naquela altura a internet era sentarmo-nos no café Gil, logo em frente, sábado de manhã, os jornais de Lisboa sobre a mesa. João, o dono, um companheiro do Nordeste e que até a dormir trabalhava, aproximava-se com o cheiro do café na bandeja.
Às vezes chovia como se o mundo desabasse em lágrimas. Os que temiam a água no momento de sair ficavam à porta, do lado de fora, esperando que a fúria desabasse no mar.
O tempo não perturbava a medida do amanhã. Os segundos não se perdiam entre os dedos como estorninhos assustados como hoje acontece com o frenesi nas teclas dos telemóveis. Estar não era uma ânsia de partir mas uma pedra onde aquecíamos as mãos da tribo.
Ser poeta era obedecer a um astuto e a uma estética de inconformidade perante os jogos mentais e castradores dos solícitos seguidores da ordem estabelecida. Era contra esses que o Carlos Faria regressava à ilha. Descia do avião com versos nos bolsos na sua peculiar maneira de ser um agitador de emoções, e na sua qualidade de gaivota de S. Jorge. Recitava poemas do Romancero Gitano de Lorca com a cantante pronúncia de Andaluzia.
Bebíamos a tua aguardente da terra enquanto conversávamos na tua casa. Deixávamos a garrafa vazia sobre a mesa onde a noite se enchia de sombras. Lembras-te? E dos pirilampos dos versos que gravitavam em redor dos cálices enquanto o reflexo do candeeiro se estendia em nosso redor como uma lua amarela? E a voz do Carlos, acossada por inflexões de chuva, continuando depois por entre o sol das trevas que nos esperava na rua?
Estávamos em Paris, aqui em Ponta Delgada. Em Roma e Corinto. Porque estávamos com os poetas que conhecíamos nos cafés dos seus versos. Gostávamos de ser como eles, ou como uma oliveira da Grécia onde o vento se recolhia com sinais de luz. Sim, gostávamos de ser como eles – insubmissos, rebeldes e empáticos. Sem amos. Por entre o fumo das horas escrevíamos duas palavras, ou três, por uma menina que cantava com um melro pendurado no indicador direito. Tudo era possível nesse tempo porque levávamos aos ombros o princípio do mundo. E riamo-nos do absurdo porque éramos jovens e poetas e podíamos transformar o fogo numa lâmina de orvalho e, sobretudo, porque nos bastavam quatro araçás para alimentarmos a alegria.
Agora estamos em Setembro da nossa idade. Passámos pela juventude que é um prodígio rente aos frutos. Mas não se envelhece com a melancolia mas com os maus tratos da memória. E a nossa é um universo.
Assim é, companheiro. Estamos na outra página e a poesia vem ter connosco pela orla marítima. O mundo perdeu-se noutros horizontes. Grande parte dos nossos amigos foi-se embora para “para outras sombras e outros disfarces”, como dizes. Apetecia-me neste momento a tua aguardente da terra, a tua bonomia, a Lorena a sorrir do outro lado da sala como só ela sabe, o Carlos Faria a recitar Lorca de olhos fechados. É verdade que o tempo, inexorável, cerca-nos de catos. Mas sei que poderemos resistir, com um ou dois poemas, à fuligem dos predadores da indiferença e do olvido.
Nada se perdeu, Emanuel. Os melros serão sempre melros nas árvores dos dias e a luz matinal uma espécie de safira que refulge na memória do nosso tempo.
O abraço de sempre, companheiro. E parabéns por este teu novo livro*. Estás ali inteiro e a pescar música entre o sol de Corinto.
*Sombras e Outros Disfarces
Emanuel Jorge Botelho
Poesia, 40 pg.
Averno | 2022
Por: Eduardo Bettencourt Pinto *