Diário dos Açores

Bom Dia e outros gestos de afeto

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A ambiência natalícia não se cinge, em boa verdade, a frequentes e insuficientes ações solidárias.
O comércio exige aos organismos autárquicos decorações e iluminações apelativas, que atraiam fregueses e ajudem as empresas a realizarem vendas para que os negócios sejam sustentáveis. Do volume de vendas natalícia depende muito a satisfação dos compromissos comerciais e a manutenção de postos de trabalho.
A prova de que os negócio corre bem, faz-se, diariamente, recorrendo a programas de gestão informáticos e a regra do balanço no final do ano, já não faz sentido.
Com tantas condicionantes fiscais e comerciais, é natural que os empresários exijam dos governantes uma ambiência festiva, traduzida na decoração e iluminação dos espaços públicos.
Concorde-se ou não, o Natal dos anos que correm é cada vez mais uma quadra de encontros, de gestos, de simpatia, de troca de presentes e, cada vez menos, a celebração religiosa que assinala o Nascimento de Jesus – verdadeira razão da Festa.
Um pouco desanuviados das incómodas, ,as eficazes imposições da pandemia que condicionaram e impediram durante meses a fio expressões de  afeto, carinho e amizade, encontros familiares, vivências coletivas e de grupo e até manifestações de urbanidade, há que repor esses hábitos que fortalecem o relacionamento humano.
O beijo, por exemplo, nos anos da minha adolescência, eram proibidos nas ruas e jardins, porque atentavam contra a moral pública.
Ainda me lembro de, no Jardim Público de Angra, o zelador, homem baixo e embatucado, com uma varinha na mão, correr com os namorados mais afetuosos dos bancos mais escondidos. Alguns, porém, incomodados com a intromissão do funcionário saíam dali e subiam ao chafariz do preto para continuarem a chama amorosa que os consumia...
Mais tarde, no advento da liberdade, o nosso país entrou também na celebração do Dia Internacional do Beijo, a 13 de abril, data que, segundo reza a lenda, foi instituído por um sacerdote italiano em 1882.
Com tão “sacrossanta” celebração, há, pois, que despir de preconceitos pecaminosos um gesto revelador de amor, amizade e cumplicidade entre as pessoas.    
Finda a pandemia há ainda muitas pessoas encarceradas em receios fundados de que “o bicho” pode surgir de qualquer lado e causar grandes estragos.
Esses ressentimentos originaram o isolamento de tanta gente, sobretudo idosos que não conseguiram resistir a depressões e outras maleitas próprias da idade. Ainda hoje é difícil saber qual a dimensão das patologias psiquiátricas, por falta de clínicos especializados.
Na falta deles, os que resistimos a essas enfermidades, temos de reatar comportamentos sociais que, não sendo já muito habituais nas zonas urbanas, persistiram nas localidades rurais: Cumprimentar quem passa dando o tradicional “bom dia” ou “boa tarde”, gesto empático que “mexe” sempre em quem passa e transmite o interesse pelo outro, pelo seu bem estar e apela à  alegria de viver.
Sou do tempo em que os homens andavam pela rua de chapéu ou boné na cabeça. Havia-os para as diferentes situações. O chapéu e o boné das Festas não era o mesmo do trabalho. Aqueles eram guardados, cuidadosamente, no guarda-fatos ou no baú; os outros dependurados num prego, no frontal da cozinha, juntamente com a jaqueta puída do trabalho.
Na rua, os mais novos saudavam os mais velhos, tiravam-lhes o chapéu, e normalmente, eram correspondidos com idêntico gesto. Não se tratava de uma atitude de subordinação, mas de  respeito pelos mais velhos.
As mulheres do campo eram mais embiocadas. Raramente saíam à rua e quando o faziam, escondiam-se debaixo do xaile com que cobriam a cabeça e a roupa de trazer por casa.
Em todo o caso, quando nos cruzávamos na rua, fosse com quem fosse, havia sempre um “bom dia”, um “haja saúde!”, mais tarde um “olá” e mais recentemente o “tudo bem?”, de influência brasileira.
Cumprimentar o outro, mesmo estranho, é uma provocação benéfica que visa retirá-lo do isolamento. Gera a comunicação e o diálogo, e torna-nos cúmplices das suas alegrias e tristezas.
A abertura ao outro, é uma atitude geradora de solidariedade, de boa vizinhança, gestos que promovem a concórdia e a paz de que tanto carecemos.
Estes são votos tradicionais na quadra natalícia, mas, raramente se prolongam pelo ano inteiro.
O fim das restrições da pandemia permitem que, nesta quadra natalícia, se retomem os gestos habituais: o abraço, o aperto de mão, o beijo, a visita aos familiares e amigos, a preocupação com os vizinhos, sobretudo pelo mais frágeis, o diálogo franco e aberto que escuta mais do que impõe, a compaixão com o sofrimento alheio, a partilha de bens e de presentes, o envolvimento em causas sociais, tendo em vista a dignificação e promoção humana.
Estas são ações transformadoras na sociedade individualista em que vivemos e que a pandemia agravou.
O melhor remédio para isso é retomarmos no campo e na cidade o Bom dia e outras expressões de amizade e afeto.

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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