Diário dos Açores

Rapazes de Rua da Ribeira Grande (3)

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Trabalhavam como normalmente se movimentavam os pedreiros das ilhas lá pelos anos setenta. Mestre Gil, lá no alto da escada, aperfeiçoava uns remendos que fizera na parede frontal da casa, enquanto que Manuel, seu servente, de pés assentos no chão, abria a boca de sono, ou preguiça, segurando a escada, e fazendo de conta que estava atento a todos os movimentos do mestre.
   Os sinos da igreja anunciaram à freguesia a hora do almoço, mas Mestre Gil ficou indiferente para com eles, pedindo a Manuel para preparar mais um pouco de cimento. “Eh, Mestre, isso já é meio-dia...” disse o servente.
Que preparasse mais isto, aquilo e aqueloutro, foi o que em troco logo lhe ordenou o mestre, e com aqueles preparativos se manteve ocupado por mais vinte minutos, durante os quais, mesmo sem compreender ouviu Manuel resmungar umas três ou quatro vezes. Por fim, quando quis, Mestre Gil desceu a escada, avançou para o Manuel. Pregou-lhe uma chapada e disse-lhe em tom severo: “Nunca mais me digas que é meio-dia! Só vais almoçar quando eu for, ou quando eu disser. Entendido?”
No dia seguinte cena idêntica aconteceu, incluindo a melodia dos sinos da igreja. Quando eles se calaram, Manuel, em voz alta, falou ao mestre nestes termos: “Eh, Mestre, ontem por essa hora, grandecíssima chapada que eu estava levando!...”
Manuel, como tantos rapazes da sua idade, ao fazer o exame da quarta classe foi trabalhar para aliviar as cargas das despezas familiares. A sua energia dava nas vistas a partir das cinco da tarde, quando Mestre Gil dava por consumado os dia de trabalho. Afinal, onze, doze e treze anos são aquelas idades em que rapaz tem de ser rapaz. De verão, àquela hora, ainda tinha tempo de se juntar aos amigos e ser rapaz como eles. Mas depois daquele primeiro verão de trabalho veio o outono, e dali a dois meses e meio às cinco horas já era noite escura. Como já trabalhava era considerado um “homenzinho” e desfrutava certas regalias em relação aos seus irmãos mais novos. Passou a ir ao cinema duas vezes por semana. Às quartas e sábados. Muitas vezes ficava indeciso na escolha da casa de espectáculos. As soirés faziam sucesso em ambas, mesmo sendo situadas a pouca distância uma da outra.
O Teatro Ribeiragrandense rodava as fitas dos Filmes Castelo Lopes, em tela normal; ao passo que a Esplanada Peixoto, em tela gigante, spresentava as películas dos Filmes Lusomundo. Duas casas distintas, cada qual com vantangens e inconvinientes. O Teatro tinha plateia, geral, varanda e camarote. A Esplanada só tinha plateia e geral.
Na Esplanada podia-se fumar. No Teatro, não. Um geral no Teatro custava 3$00 (três escudos), na Esplanada 3$50. Uma plateia na Esplanada custava 8$50, no Teatro 7$50. Como cada sessão de cinema era composta por dois filmes, um deles quase sempre era bom, e o outro uma grande praga.  Da primeira metade da década de setenta recordamos as películas dos “spaguetti westerns”, dos espadachins e   gladiadores, para além dos comediantes como Cício e Franco, Cantiflas, Charlôt, Jerry Leewis, Louis de Funès, entre tantos outros.
Ainda deve haver por aí gente que bem recorda os nomes “aportuguesados” de alguns atores que ídolos foram nos tempos da nossa infância e juventude: O caso do “Gringo”, por exemplo. Porque fora assim chamado por um mexicano numa cena de certa película. A partir de então, Giuliano Gemma (1938-2013) usando o nome artístico de Montgomery Wood, foi Gringo toda a sua vida e mais seis meses. O mesmo aconteceu com Nello Pazzafini (1934-1997), que uma vez aparecendo como Padre Carmelo num filme de cowboys - um fradalhão teso da verga, que dava porrada que misericórdia, e que era amigo do Gringo. Entre a gente passou a chamar-se entre de Padre Caramelo.
No meio de tudo isso, sempre nos intrigaram os nomes de “Luís de Funcho”, “José Realejo” e “Januário”, apontados respectivamente para Louis de Funès (1914-1983), Jerry Leewis (1926-2017) e John Wane (1907-1979).
Em temporada de futebol a afluência às matinnés era mais fraca, mas nunca deixou de ser concorrida. Para além das favas, das freiras, do amendoim e do tremoço vendidos à porta da casa de espetáculos, outras coisas ali que se poderia comprar nos dias de matinné. Sempre havia um ou outro rapazinho que queria ganhar uns troquinhos para poder comprar o seu bilhete. Quem gostava de ler adquiria a bom preço livros já lidos e revistas usadas, principalmente banda desenhada em quadradinhos, com histórias de cowboys, agentes secretos, romancese não só.
Foi ali, à porta do Teatro Ribeiragrandense, que conseguimos pouco a pouco, e por alguns anos, criar uma coleção de “livros de macaquins”, editados pela gigantesca brasileira Editora Abril, que ainda existe nos nossos dias, sediada na cidade de São Paulo.
Ao que parece, na primavera marcelista era uma das poucas editoras estrangeiras que tinha carta branca para entrar em Portugal com algumas das suas edições. Fora fundada em maio de 1950 pelo italiano Victor Civita, com o nome de Primavera, que teve como primeira publicação a revista Raio Vermelho, a qual não fez muito sucesso. Em julho do mesmo ano foi-lhe mudado o nome para Editora Abril, estreando-se com a revista Pato Donald, que ganhou leitores a torto e a direito, tendo tudo começado com apenas seis funcionários dentro de um pequeno escritório.
Se Walt Disney disse um dia que o seu sucesso começou por causa de um rato (Mickey), Victor Civita reconheceu, e muito bem, que tudo o que a Editora Abril alcançou foi por causa de um pato.
Através da revista Pato Donald a Disneylândia foi dada a conhecer ao mundo de língua portuguesa e não só. No ano seguinte, pela mesma editora foi lançado no mercado o segundo livro em quadradinhos da família Disney, o Zé Carioca. Das outras dezenas de publicações, de variadas temáticas e do acelarado crescimento da empresa não pretendemos aqui falar, porque já estamos a fugir muito do fio que nos conduz à meada. Porém, convém lembrar que depois apareceram os famosos almanaques do Patinhas e do Mickey, entre outros, que deliciavam miúdos e graúdos.
O centro da Disneylândia divulgada pela Editora Abril  concentrava-se na cidade Patópolis. Através da nossa coleção ficámos a conhecer muito bem este burgo dos patos, e confessamos com uma ponta de orgulho que ainda nos lembramos dos nomes dos seus principais habitantes. No caso de alguém querer refrescar a memória, aqui vão alguns:
Urtigão, Pf. Gavião, Pf. Pardal, lampadina, Pf. Ludovico, Tico, Teco, Coronel Cintra, Mancha Negra, Metralhas, Metralhinhas, João Bafo-de-Onça, Pateta, Gilberto, Super-Pateta, Super-Gilberto, Horácio, Clarabela, Mickey, seus sobrinhos Chiquinho e Francisquinho, seu cachorro Pluto, Minie, suas sobrinhas Zazá e Zizi, Madame Mim, Madga Patalógica, entre outros,
Com Gansolino iniciamos as saudações aos patos, sendo ele sobrinho-neto da Vovó Donalda, que por sua vez era filha de Cipriano e Ambrósia Patus, e neta de Cornélio Patus. Donalda casou com Tomás Patus e tiveram três filhos: Élder Patolfo, Patrícia Pato e Patoso Pato, tendo este último casado com Hortência Mc. Pato, filha de Fergus Mc Pato e de Donilda O’Pata. Hortência Mc. Pato é irmã do Tio Patinhas e de Matilda Mc. Patinhas. De Patoso e de Hortência nasceram os gémeos Pato Donald e Dumbela Pato. Donald não tem filhos, mas a sua irmã veio a ser a mãe de Huguinho, Zézinho e Luizinho. Por sua vez, Élder Patolfo casou com Patina Doral, de quem nasceu Peninha, e Zeca Pato. Quanto a Patrícia Pato, esta casou com Gustavo Ganso, de quem supostamente nasceu Gastão (o pato sortudo) e uma outra pata de quem não recordamos o nome, que veio a ser mãe de Biquinho. Há também nesta linhagem um Ganso Gabriel, um Bicudo e uma Gansólia que vêm a ser primos de Patoso, que não sabemos ao certo quem foram seus pais, podendo neste estado considerar a peternidade ao irmão da Vovó Donalda, neste caso tio-avô do Pato Donaldo, que tem por nome Patus Quela.  De uma outra linhagem surge uma pata muito especial com o nome de Margarida, que à primeira vista conquistou os corações de Donald e Gastão. Faz ciúmes aos dois primos e com isto alimenta o seu eggo. Mesmo com toda a sua sorte, Gastão sabe, e muito bem, que o coração de Margarida bate mais forte quando Donaldo aparece. Tem três sobrinhas gémeas: Lalá, Lelé e Lili, que são, mais ou menos, da mesma idade dos patinhos Huguinho, Zézinho e Luizinho.
Patacôncio é um trilionário, ou quadrilionário fanfarrão, quase tão rico como Patinhas, mas herdou a fortuna do pai; ao passo que Patinhas ganhou todo o seu dinheiro com o seu trabalho. Tio Patinhas tem na sua caixa-forte uma grandiosa piscina de dinheiro, com prancha de saltos e tudo, onde todos os dias pratica natação. Em lugar especial guarda dentro de uma redoma de vidro a sua moeda número um – a primeira que ganhou em sua vida, trabalhando como engraxador, e que, segundo ele, é ela que lhe tem dado sorte nos seus negócios, fazendo com que ele ganhe sempre mais e mais dinheiro. Esta mesma moeda é a tal que Madga Patalógica, a pata feiticeira, teima em roubar para ver se as suas bruxarias passam a ser mais eficazes.  Não é nada fácil descrever Patópolis porque é uma cidade sempre em movimento. Tem super heróis, como já foi falado os casos de Super-Pateta e Super-Gilberto, mas não queremos esquecer o Morcego Vermelho, que se trata de Peninha transformado em herói; e que, mascarado, de capa vermelha e molas nos pés, anda aos pulos pela cidade. Os livros da Editora Abril levavam-nos a lugares onde o cinema não nos podia transportar. Em 1980 apareceu uma empresa em Portugal que tentou monopolizar a indústria da banda desenhada. A partir daí os “livros de macaquins” nunca mais tiveram a mesma graça.
Conhecer e falar da vida destes personagens da banda desenhada é bem melhor do que mexericar as vidas dos nossos vizinhos, amigos e inimigos – o que infelizmente foi o rumo que o Manuel tomou na vida. Já lhe partiram os cornos várias vezes, mas sempre nascem outros em seu lugar. Pobre Manuel!
Numa bela manhã, por volta de 1980, enquanto esperávamos a camioneta das sete e um quarto, debruçámo-nos na ponte do Paraíso para obsevar e admirar o vale. O Manel veio juntar-se a nós. Expressando a sua habitual cortesia deu-nos os bons-dias para meter conversa. Lá em baixo, às sete em ponto, o sr. Dorvalino soltava os patos. Eles, em fila, um por um, metiam-se à água, fazendo-nos admirar a forma como eram organizados e disciplinados. Uma pequena visão da cidade Patópolis. Manuel desabafou: “Estão se consolando! Não têm que ir trabalhar, como a gente. Têm o dia por sua conta e são felizes. Aos dez anos deixei de ser menino. Ainda tive a sorte de ter ficado na escola até à quarta classe. Ah, e eu nunca fui menino. Sempre fui um rapaz da rua, e sempre serei toda a vida e mais seis meses.”
Com esta nos despedimos porque estas viagens no tempo são um tanto-quanto cansativas. Haja saúde!

O Vale do Paraíso
Tinha tudo o que é preciso
Para se viver em paz.
Houve marrecos aos montes
Naquele espaço entre as pontes
No meu tempo de rapaz.

Mas alguém se alimentando,
Um-a-um os foi levando,
Deixando ficar tão poucos!
Podem correr os boatos,
Mas estes benditos patos
Nunca mais viram os outros.


Fall River, Novembro de 2022

Alfredo da Ponte, nos EUA *

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