Diário dos Açores

Café

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As ruas brancas, ar gélido e céu azul. Dezembro.
Escrevo estas notas no café.  Na esplanada, sobre as mesas e as cadeiras vazias, montículos de neve. Os guarda-sóis, verdes, hirtos e recolhidos. Parece-me um quadro minimalista com motivos de Inverno abandonado num sótão.
Está sol. Parece-me no entanto uma irradiação extemporânea, acidental. Recebo-a, mesmo que metaforicamente, de braços abertos.
Um casal conversa brevemente à entrada. O homem, um sujeito jovem, segura um poodle branco pela trela.
Surpreende-me não me incomodar a música ambiente, alta, as vozes que se cruzam comigo como se ricocheteassem das paredes. Passo grande parte do tempo sozinho. O isolamento deve ter contribuído para esta necessidade de ruído, e que geralmente absorvo como um elemento desagradável e nocivo.
Uma gaivota (imagine-se!, a uns quarenta quilómetros do mar...) num voo raso deixa uma sombra breve na parede da loja em frente. Volta à esquerda e perco-a de vista.
Junto ao vidro que dá para o passeio, cabelos brancos apanhados num carrapicho, óculos, absorta, ar de quem observa um espectáculo monótono, a mulher, convictamente solitária, movimenta a caneta sobre um livrinho naquilo que parecem ser palavras cruzadas.
Momentos depois, um sujeito alto e pela mesma idade (suponho) senta-se no cadeirão à sua frente. Segura na mão direita um copo de alumínio a fumegar. Distende as longas pernas como se tivesse chegado a casa. Entre eles há sorrisos e saudações que não decifro.
Volto a minha atenção para o exterior.
Não gosto dos curtos e sombrios dias de Inverno. Parece-me uma paragem cíclica no tempo onde se impõe um mundo suspenso. As cores dos dias extinguem-se numa fuligem a preto e branco. Literalmente.
Há alguns anos atrás, numa breve passagem por Frankfurt, pelo Inverno, dei um passeio pelas margens do rio Main. Nevava. O ar, gélido e húmido, raspava a pele com uma crueza de lâmina. Mas havia uma beleza soturna que achei interessante fotografar. As imagens no computador surpreenderam-me: pareciam ter sido convertidas para preto e branco. Sim, o Inverno é uma estação sem cores.
No café animam-se espíritos. Lá fora a neve, a temperatura de frigorífico, a urgência que se tem em atravessá-la. Ninguém se movimenta em passo cadenciado. Não correm porque temem parecer feio.
Observo e vou tomando notas. Mas há uma altura em que devo juntar as minhas coisas e voltar ao mundo da rua.
Passo junto ao casal quando vou a sair. O sujeito das pernas compridas volta a cabeça na minha direcção e interpela-me:
– Faltou-lhe a inspiração?
– Como? – respondo surpreendido.
– Notei que escrevia e de repente parou...
Afinal o observador foi apanhado.
– Não escrevia – respondi. – Tomava notas.
– É escritor?
A companheira olha para mim por cima dos aros dos óculos, baixando a cabeça.  Hesito na resposta. Então ele ataca com outra pergunta.
– Que há de especial num café? Não me parece o local mais interessante para inspirar um escritor.
– A realidade pode não ser interessante mas também pode ser. Depende daquilo que fazemos com ela. Imaginemos que queremos fazer uma fogueira. Juntamos pauzinhos, erva seca, algo de fácil combustão. Daí brota o lume. As histórias começam assim – o punho no papel juntando palavras dispersas. Até que se tornam numa trama.
A resposta deve parecer-lhe retórica. Soergue as sobrancelhas como se tivesse ouvido um segredo sem fundamento. Também não vou insistir. As coisas inexplicáveis são matéria inextricável. Podem parecer artificiosas. Ou, simplesmente, especulações sobre um grito que não se ouve.
Agradeço e saio. Apetece-me correr para casa mas parece-me despropositado.

Eduardo Bettencourt Pinto *

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