O sismo da pobreza ainda está a tremer
Diário dos Açores

O sismo da pobreza ainda está a tremer

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Caro Nuno Costa Santos,
meu tão velho e cúmplice amigo:

1. O facto de o meu filho ter nascido quatro dias depois da publicação do teu texto impediu-me de lhe dar resposta imediata, como teria gostado de fazer. Mas também nos permitiu a todos compará-lo com as restantes intervenções a propósito do meu ensaio Os Pobres Mais Pobres, publicado na edição de 28 de Outubro de 2022 do semanário Expresso (Revista, págs. 28-31).Que não existiram, isto é.

2. Portanto, o primeiro dado a registar é esse. A mais amplificada denúncia do desastre em que consistem os actuais índices de desenvolvimento humano dos Açores, tão mais desastrosos quanto se verificam ao fim de quase 40 anos de exultante subsidiação europeia, mereceram dos representantes dos três ciclos políticos que o arquipélago experimentou nesse intervalo – tanto quando das respectivas oposições, aliás – um ruidoso silêncio. Alguns dirão que nenhum responsável encontra como discordar. Outros que nenhum opositor vê vantagens em concordar. E outros ainda que se estão todos nas tintas. Eu, que há tantos anos percorro o deserto na tentativa de recrutar militância para essa preocupação, tendo a concluir as três coisas: nenhum responsável encontra como discordar, nenhum opositor vê vantagens em concordar e estão-se todos nas tintas – quase todos.

3. Os açorianos não gostam de ser confrontados com a miséria que grassa pelas ilhas, acredita-se. Há custos políticos, sociais e (sobretudo) eleitorais para quem a denuncie, mesmo sendo a denúncia essencial a qualquer esforço de contrariá-la. E, portanto, calam-se.

4. Calam-se porque lhes convém, mas também porque podem. E isso só não é o mais inquietante de tudo porque não há nada mais inquietante, ao falar-se dos Açores de hoje, do que as próprias condições de vida em que vivem tantos açorianos. Mas não deixa de ser um sinal perturbador que, ao fim desses quase 40 anos de subsidiação e quase 50 de autonomia, a nossa sociedade continue sem massa crítica suficiente para o escrutínio de um contra-senso tão estrutural e, apesar disso, tão irrelevante para todos quantos, no seu delírio entediado, insistem em considerar o nosso projecto autonómico um sucesso sem ressalvas.

5. Desse ponto de vista, a tua mobilização traz um pequeno fôlego de esperança. Mas, ao mesmo tempo, é frustrante que o que verdadeiramente urge se resuma, para ti, a matéria preambular, ficando todo o espaço substantivo – no teu texto como noutros debates que temos tido, nomeadamente no programa da RTP/A Novo Normal, que tenho a honra de partilhar contigo –, àquilo que creio ser (e espero conseguir mostrar-to) o seu exacto oposto.

6. Em resumo, dizes que concordamos no diagnóstico e discordamos na terapêutica. Não. Discordamos também na importância do diagnóstico, no tempo que devemos dedicar-lhe, nos esforços que urge canalizar para ele e – inclusive – nos sacrifícios que se justifica admitirmos fazer para o combate que ele impõe. Como, por exemplo, um remoto reempoderamento do agora chamado Representante da República, “proposta” (a palavra é tua, evidentemente que não se trata de uma proposta) que incluí no referido ensaio precisamente na esperança de que ao menos ela pudesse gerar algum debate. Resultou.

7. Mas recordo-te de que o que o texto diz é: “Se para se desfazerem essas assimetrias for preciso equacionar o regresso transitório à figura do ministro da República, então é por aí que a revisão do Estatuto deve passar: pela contenção temporária da autonomia, e não pela sua ampliação”. E por essa formulação eu dou de facto a cara. Se, para se desfazerem as devastadoras assimetrias dos Açores actuais – as violências contra a pessoa, os radicais desequilíbrios no acesso ao rendimento, o atraso endémico na saúde e na educação, o sensualismo estéril nas estratégias económicas, a inexistência quase absoluta de elevador social ou de esperança para as novas gerações –, for preciso equacionar o regresso transitório à figura do ministro da República, então devemos equacionar o regresso transitório à figura do ministro da República. Mais te digo: se para se desfazerem essas assimetrias fosse preciso equacionar o regresso definitivo à figura do ministro da República, então devíamos equacionar o regresso definitivo à figura do ministro da República. E mais ainda: se para se desfazerem essas assimetrias fosse preciso equacionar o cancelamento de todo o projecto de autonomia, então nós tínhamos mais era que equacionar o cancelamento de todo o projecto de autonomia.

8. A autonomia dos Açores não pode gozar de maior santidade do que a dignidade de vida dos açorianos. Ou, como digo no referido ensaio: “De nada serve a autonomia, esta ou outra (mais ou menos expressiva), se não servir para uma melhoria efectiva das condições de vida da população.” E não são umas quantas pessoas, nota. Nem são tantas, per capita, como em Lisboa ou noutras regiões pobres do país, como não resististe à tentação de sugerir. São muitas mais, como sabes.

9. Só para te dar um exemplo: em anos normais, o abandono escolar nos Açores corresponde ao triplo da taxa nacional, sendo o maior de toda a União Europeia (incluindo os países chegados do ex-Bloco de Leste). E é assim, em diferentes graus – repito – com o desemprego, a exclusão social e a desigualdade na distribuição dos rendimentos; a dependência do Rendimento Social de Inserção e a subsidiodependência em geral; o défice de ascensor social, a taxa de pobreza e a pobreza persistente; o insucesso escolar e o analfabetismo; a mortalidade e a obesidade infantis, a diabetes, o alcoolismo, o suicídio jovem e a baixa esperança média de vida; a taxa de abstenção e a insuficiência na participação cívica das mulheres; a violência doméstica e o abuso sexual, o incesto e a gravidez na adolescência – entre outros rankings.

10. Portanto, fica desde já aqui a ousadia por onde se abrir uma refutação: o Joel Neto põe em causa até a própria autonomia. Desta vez não é truque: no fundo, ponho mesmo. Mas, já agora, peço-te que faças uso rigoroso das minhas palavras, na transcrição como na interpretação. Porque eu sou, tanto quanto tu, um velho, apaixonado e declarado entusiasta da autonomia. Só não consigo celebrá-la inconsequentemente, sem monitorizar a sua saúde e certificar-me da sua viabilidade a médio/longo prazo – diagnosticando-lhe as doenças que a poderão matar enquanto instituição e, inclusive, já a vão matando enquanto sonho para tantos açorianos.

11. É para essa preocupação que ainda não desisti de te recrutar, porque sei que, no essencial, estamos de acordo (e espero que também o tenhas lido nos livros e textos meus que citas incompletamente): a autonomia foi uma conquista extraordinária, é (em abstracto) uma solução extraordinária e voltará a ser (em concreto) um caminho extraordinário, e idealmente progressivo. Isto é: desde que sejamos capazes de a libertar dos desvios que, com a nossa sonolência crítica – e o profundo egoísmo das nossas classes média e média/alta, de que ambos fazemos parte, tal como os nossos senadores – , lhe permitimos. Já intensificar o rumo em que neste momento seguimos, e que nos trouxe até à tragédia social em que estas ilhas vivem, será continuar a engordá-la até que se lhe entupam as veias e a mate o próprio coração. No grupo dos que o defendem, sim, estão os seus verdadeiros adversários.


Meu caro amigo Nuno:

12. Lamento se te trago novas indesejadas: o sismo da pobreza dos Açores ainda não acabou, como talvez se pudesse inferir do título do teu artigo. Não acabou, não está (nem por sombras) perto de acabar e qualquer proposta para o que fazer, usufruir ou pensar “depois” de ele acabar é extemporânea. Como é extemporâneo (e não “supérfluo”, palavra que me atribuis mal, à letra e ao espírito) o chamado “reforço da autonomia”, reivindicação alucinada – insisto nesta ideia – que só importa às nossas mais restritas elites socio-económicas, mais-do-que-interessadas na manutenção do statu quo, e com que os políticos condescendem (aliás, unanimemente) porque não custa nada concordar, fica lindíssimo em título de jornal e sempre permite apresentar algum serviço com sound bite.

13. A autonomia açoriana, como leste nos mesmos livros meus que citas (e, aliás, como bastante mais do que matéria preambular), foi um milagre. Permitiu o desenvolvimento de infra-estuturas, permitiu a mitigação de atrasos históricos, permitiu a consolidação de uma identidade, permitiu-nos sonhar. Mas envelheceu ao mesmo ritmo a que o Homem decifra os mecanismos da sua própria perpetuação no poder.

14. Pretender reforçar-lhe o peso sobre os ombros, neste momento, pode parecer romântico, mas é contrário à responsabilidade, é contrário (no fundo) à autonomia e é (seguramente) contrário aos Açores. A autonomia e a justiça social não são adversárias. Nem sequer constituem uma dicotomia: estão na mesma trincheira, postas perante o mesmo inimigo e ambas a perder a guerra. Simplesmente, uma tem prioridade natural sobre a outra: a que trata do socorro às populações, como em qualquer situação de emergência.

15. E eu gostava de ver os escritores e os artistas dos Açores do lado certo da história – por amizade, por respeito intelectual e também por conveniência. Somos muito poucos, apesar de tudo. E este é o tempo de exigir uma sociedade mais justa e fraterna, não de gastar as energias sobrantes – de ocupar as poucas vozes que ainda se preocupam – na exigência de uma sociedade de contornos politicamente (ou mesmo apenas institucionalmente) mais distinguíveis.

16. Precisamos de ter a humildade, todos nós os que podem sustentar-se a si mesmos, de olhar para o modo como vivem os pobres dos Açores. De entrar nas suas casas. De discutir com eles as suas expectativas de vida. De falar com as suas crianças. Desconhecemo-lo totalmente, e tu demonstra-lo com esta frase (cito novamente do teu artigo): “Até porque o presenciei durante o meu crescimento e topo-a hoje, a lucidez dos açorianos pobres relativamente a todas as formas de pobreza é muito verbalizada pelos próprios.” Estás enganado, meu amigo. Não estamos a falar desse género de pobreza em que o nosso vizinho suspira em causa própria: “Coitado de quem é pobre.” Estamos a falar de uma pobreza inimaginável na Europa do século XXI. De graus indizíveis de insalubridade. De má nutrição. De violências reiteradas e tacitamente aceites pelos cuidadores (quando não são eles os agressores). De ausência de quaisquer planos (ou sequer desejos) de emancipação. De depressão profunda. E, sim, de desconhecimento absoluto da pobreza que significa essa vida, porque simplesmente não se conhece outra.

17. São milhares de pessoas a viver assim pelos Açores todos, dentro e fora dos bairros sociais em que o sistema foi conservando (ou para que foi proscrevendo) o seu eleitorado. E todos nós, independentemente do nosso trajecto de vida, devemos questionar-nos sobre se estamos de facto conscientes dessa realidade. Se a conhecemos de todo. Não há vergonha em aferi-lo.Em Lisboa, por exemplo, as cheias de 1967 mostraram aos betinhos da Juventude Universitária Católica uma pobreza que ignoravam por completo. Ainda há dias, em entrevista a Francisco Pinto Balsemão, António Guterres reconheceu essa epifania. Para muitos dos seus contemporâneos, foi esse conhecimento a fazê-los abandonarem Salazar, o que explica a cooptação de Caetano para ditador.


Meu amigo:

18. A autonomia dos Açores é um copo meio cheio: ao mesmo tempo um sucesso admirável e um fracasso desolador. Só que nós nunca a quisemos para ser um copo meio cheio.  Nem para nos podermos comparar (como estranhamente fazes) com a província do continente.

19. E, seja como for, o romantismo da autonomia tem de ser precedido pelo romantismo da justiça. Da equidade e da justiça social. Não há justiça social nos Açores, como até José Manuel Bolieiro – um homem de direita, imagina – já percebeu. Infelizmente, continua a pregar sozinho por entre o laxismo generalizado, apesar do seu próprio partido e perante a inércia da esquerda.

20. Com tantos anos e tanto dinheiro, podíamos ter feito melhor. Mas, por outro lado, ainda podemos fazer melhor. E, ao contrário do que pensas, não é com a intervenção de quem diz que podemos fazer melhor que a autonomia fica em risco. É na ausência dessa intervenção que ela verdadeiramente pode morrer.

21. Ao pé deste problema, todos os assuntos que se discutem no Parlamento, nos jornais, nos círculos literários, pelos escritórios e às mesas dos cafés dos Açores são muito importantes e, ao mesmo tempo, não têm importância nenhuma. E, enquanto forem suficientes para nos ocuparem, no nosso comprazimento com um estado de coisas que no fundo nos é favorável – a nós, a classe média e média/alta, a elite intelectual e artística, aqueles que podem sustentar-se sozinhos –, estas ilhas continuarão a caminho deonde vão: lado nenhum.

22. Ou por outra: ficam disponíveis para a gentrificação absoluta. E ela vem aí. Os ricos do mundo não só já descobriram os Açores, como estão a comprar os Açores. Sem massa crítica, sem sociedade civil, a nossa capacidade de nos mantermos inteiros não será pouca: será nenhuma.

23. E nós, escritores, não podemos continuar a fazer silêncio sobre nada disto. Nem na nossa intervenção cívica, nem na nossa produção literária. A literatura não pode ser cúmplice. A literatura nunca é cúmplice.

24. Aqui te envio eu o meu abraço de autonomista. Tão autonomista que não quero que esta autonomia morra de repente, de tão gorda e anafada. E tão humanista que, se isso ajudasse as pessoas a viverem com dignidade, até admitiria contê-la.

por Joel Neto *

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