Diário dos Açores

Mário Santarém Andrade, referência cultural e cívica

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Mário Santarém Andrade identificou mais de 50 ou 60 anos da sua vida com a vida e a história de Coimbra, o dia a dia da cidade, as suas instituições, as suas tertúlias, as suas livrarias e alfarrabistas, os seus jornais e revistas, a realidade política e social, desde a segunda metade do seculo XlX, o decurso do seculo XX até á atualidade.
Foi contemporâneo e amigo de muitos açoreanos que estudaram em Coimbra, alguns dos quais ali se fixaram. Lembro, por exemplo, a  proximidade de convívio e de partilha cultural de Carlos Santarém Andrade com, entre tantos outros açoreanos ,Vasco Pereira de Costa poeta, escritor, homem de teatro que, alem do magistério, exerceu as funções de diretor do Departamento de Cultura, em Coimbra (1991-2001  )  e, em seguida, Diretor Regional de Cultura do Governo dos Açores ( 2001- 2008) ; o escritor , cronista e também professor Cristóvão de Aguiar; o Prof da Faculdade de Medicina José Augusto de Medeiros exemplo de tenacidade e competência profissional; o Prof Linhares Furtado, também professor da Faculdade de Medicina e que formou uma escola, no âmbito dos transplantes e da urologia; o  lendário Vitor  Lobão, companheiro de gerações sucessivas…
São muitas as lacunas nesta evocação escrita sob um forte impacto emocional. Mas acrescento outros contemporâneos: Renato Borges de Sousa, José Bretão, Antonio Berbereia, Miguel Loureiro; o bibliotecário da Universidade José Manuel Mota de Sousa, também orientado – tal como Carlos Santarém Andrade  pelo magistério de Jorge Peixoto; e o médico Germano de Sousa,  um nome de projeção nacional e internacional, no domínio das análises clínicas e da investigação científica e que, enquanto estudante universitário, se ligou aos principais movimentos culturais, artísticos e democráticos.
Os açoreanos em Coimbra e as Repúblicas que integraram sejam quais forem as áreas de actividade mantiveram – se vinculados ás suas raízes. Um açoriano que não preserve a sua História e não construa pontes e consensos sociais e culturais ficará inexoravelmente entregue às imprevisíveis contingências do futuro.
Natural de Gouveia, Carlos Santarém Andrade (1941- 2023), radicou – se em Coimbra para se licenciar em Direito, fazer o Curso de Bibliotecário–Arquivista e desempenhar o cargo de diretor da Biblioteca Municipal de Coimbra. Podia ter sido, apenas, um burocrata competente, mas, além do exercício da atividade profissional, foi o companheiro de várias gerações que se dedicaram à criação literaria, à investigação e critica e se empenharam na defesa da liberdade.
Tive o privilégio do convívio de Mário Santarém Andrade e, poucos dias antes de falecer, telefonou – me para me dar conta do livro publicado em Novembro sobre a génese da implantação da República, em Coimbra. Era a sequência de outra obra publicada em 2005: Uma Página do Movimento Republicano em Coimbra: Do Ultimato Inglês ao 31 de Janeiro.Revelou – me que encontrara documentos factuais que permitiam uma nova leitura de acontecimentos, da intervenção de políticos e de questões controversas. «Vai gostar, vai gostar» repetiu – me com a sua voz exausta e sincopada, quando me pedia a morada para enviar os livros. Foram as últimas palavras que lhe ouvi. Não o vou esquecer. É o grande ausente, no estimulante convívio no Parque do Palace Hotel da Curia. A respiração das tílias envolventes não consegue adormecer a sua memória.
 Considero inesquecíveis os nossos encontros, ao fim da tarde, à noite, as vezes a avançar pela madrugada, à entrada do Palace Hotel da Curia, CORTAR a respirar o aroma das tílias CORTAR VEM REFERIDO NO PARÁGRAFO ANTERIOR. Era uma biblioteca e um arquivo em voz alta. E sem a arrogância típica e a prolixidade vulgar dos eruditos.
Deixou Mário Santarém Andrade um legado notável: Presença, uma Revista, um Movimento, 1980; Vértice: Índice de Autores 1942 – 1986, 1987. Duas obras de consulta obrigatória. No caso da Vértice dá – nos esclarecimentos fundamentais e clarifica dúvidas acerca dos participantes nas várias etapas do neo- realismo, recapituladas, num conspecto sumario, por António Mota Redol, no recente número da Nova Síntese, consagrado à memória de Sidónio Muralha, Carlos de Oliveira e outros.
Citar é sempre omitir, mas destacava outros índices impressos, da maior importancia: o de Cândido Nazareth, do Instituto de Coimbra; o de Mário Roque, do Dicionário Bibliográfico Português, de Inocêncio Francisco da Silva, prosseguido por Brito Aranha, Martinho da Fonseca e Alvaro Neves; e, ainda, o de Francisco Santana, da Lisboa Antiga e da Ribeira de Lisboa de Júlio de Castilho. Instrumentos de consulta obrigatória, Mário Santarém Andrade pode incluir – se entre estes e outros autores que merecem o nosso apreço.
Contudo, além desta recolha minuciosa publicou A Envolvência Coimbrã de Régio e Nemésio, (2001); Os dias de Coimbra na Criação de Miguel Torga, (2003);. Coimbra à Minha Procura: O Percurso Coimbrão de Ruben A.,(2005) e, por último, lançado em Novembro de 2022,Coimbra e a República, da propaganda á proclamação.
O ambiente de tranquilidade dos arquivos e das bibliotecas não afastou
Mário Santarém Andrade da realidade quotidiana, da família e dos amigos. Teve, até ao fim, a consciência de que nos encontrávamos perante um mundo de alterações constantes, ou noutras palavras, um mundo que se apresenta com novas possibilidades, mas também requer enormes desafios.

Antonio Valdemar *

*Jornalista, carteira profissional número Um

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