Diário dos Açores

Preocupações sobre a ilha das Flores

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Nado em Lisboa, criado em Cascais, florentino apenas por adopção, recebi com orgulho e, confesso, algum receio o convite da minha amiga Ana Monteiro para uma espécie de balanço do ano de 2022 na ilha das Flores. Não sendo o primeiro a tentá-lo, corro o risco de alguma repetição. Para o evitar, não me vou centrar exclusivamente em 2022, mas, de alguma forma, na nossa situação actual, culminando em 2022, mas com raízes mais profundas. Em vez de sugerir cinco acontecimentos ou temas positivos, e outros tantos negativos, como pedido pela Ana, concentrar-me-ei em cinco assuntos que me parecem motivo de preocupação. Algo negativo, eu sei. Mas pronto, talvez numa próxima ocasião, sentindo-me mais optimista, tente o difícil exercício de encontrar motivos de alegria.
1. Do turismo superficial – O turismo na ilha das Flores tem vindo em crescendo. É mesmo possível que tenha sido aqui nas Flores que o efeito negativo da pandemia menos se fez sentir, a nível nacional. Os números finais do turismo de 2022, quando estiverem disponíveis, serão certamente impressionantes. No entanto, preocupa-me a superficialidade do nosso turista típico: aquele que «faz» tantas ilhas quantas consegue encaixar nas suas férias, saltitando de ilha em ilha, deslocando-se de carro de miradouro em miradouro, de selfie em selfie, olhando deslumbrado para uma paisagem cuja génese não compreende, nem lhe interessa, olhando para o resultado do esforço de gerações e gerações de florentinos, que ignora, moldando a natureza e a paisagem. Passam, deixam algum crescimento económico, mas pouco levam, além de umas quantas fotografias onde a paisagem, onde a nossa ilha, mais não é que pano de fundo para o seu ego. Que fazemos para contrariar isto? Além de alguns excelentes museus (o Museu das Flores e o Museu da Fábrica da Baleia do Boqueirão são excepcionais), muito menos visitados do que merecem, o turista que aqui chega pouco encontra, além da paisagem para a selfie. Onde estão, por exemplo, os livros de poesia de Pedro da Silveira ou de Roberto de Mesquita à venda? E traduções? E o Alfredo Luís (Alfred Lewis) não escreveu Home is an Island em inglês? Um turista, ou um membro da diáspora florentina que não domine o português, onde o encontra? Em lado nenhum. Os municípios florentinos têm vindo, ao longo dos anos, a fomentar as publicações sobre a ilha, tendo a Câmara Municipal de Lajes das Flores, mais recentemente, sido fundamental para comemorar o centenário do nascimento de Pedro da Silveira e para a reedição da sua obra, em colaboração, entre outros, com o Instituto Açoriano de Cultura. Mas quem nos visita não se depara com nada disto. É como se não existisse.
2. Do turismo de massas – Ainda sobre o crescimento do turismo, é importante salientar que ele corresponde não apenas ao crescimento da receita, que é real e benéfico, mas sobretudo a um crescimento no número de visitantes, no número de dormidas, no número de alugueres de automóveis, etc. É aqui que a coisa é mais problemática. Todos conhecemos o fenómeno. Quantos paraísos foram descobertos pelo turismo para, através dele, se irem paulatinamente transformando em infernos? O Algarve, quem se lembra como era? E mesmo São Miguel, que caminha a passos largos para se transformar num Algarve açoriano? É isso que queremos para as Flores? PEMTA e POTRAA aí estão. Um em revisão, outro, já bem mais antigo, suspenso. Ambos cheios de visão, boas intenções e ideias: pequenas unidades, pouca construção nova, muita reabilitação e turismo rural, turismo para os segmentos mais altos, com baixa densidade, mas com o mesmo senão melhor retorno económico. O que se vê no terreno, no entanto, é o oposto. Sejamos claros: a ilha das Flores não sobreviverá ao turismo de massas. Precisamos de mais qualidade, e não de maior quantidade. Precisamos que os locais excepcionais desta ilha o continuem a ser, e não o serão se o número de visitantes continuar a aumentar sem limite. Precisamos de captar o turista certo. O turista que procura a cultura açoriana e florentina e ama a natureza, mas compreende, na expressão feliz do Açores 2027, que a nossa natureza é humana. O turista que ama os nossos caminhos e canadas, «nos quais as pedras\são, mais que pedras, a força\de as ter trazido e plantado\sob os passos futuros» (Pedro da Silveira).
3. Dos florentinos – A ilha das Flores é um local único, a todos os títulos. O seu património natural e humano, a complexidade da sua paisagem, uma natureza pujante moldada pelo esforço humano, o seu património imaterial, as tradições, a própria linguagem, com os seus regionalismos por vezes variáveis de freguesia para freguesia, de lugar para lugar, a sua arquitectura, sobretudo a popular, a beleza das suas povoações aninhadas na paisagem, os seus caminhos e canadas, tudo isto, como dizia Pedro da Silveira, «flores de diligência e força\com raízes de tino», corre o risco de desaparecer, de se descaracterizar. Esta identidade florentina depende, acima de tudo, da existência de florentinos, de gente que ame a sua terra e nutra as suas tradições (as boas, bem entendido). Mas a população decresce. Em parte devido ao turismo de massas, e de forma irónica numa ilha onde há edifícios devolutos a cada esquina, encontrar um local para morar é uma verdadeira saga. (Re)construir é cada vez mais difícil: os custos são mais altos devido à nossa dupla insularidade, mas há também a falta de mão de obra na construção, que, se é preocupante a nível nacional, nas Flores é uma catástrofe. E onde alojar a mão de obra não local que se conseguir desencantar? Encontrar uma casa para alugar, tanto para florentinos como para forasteiros, é um exercício de paciência, tempo e muita, muita sorte. Nem a excelente conectividade que vamos tendo, com a expansão da fibra óptica, e que poderia ajudar a fixar tantos florentinos, já que o trabalho remoto é agora possível em cada vez mais freguesias, nos ajuda. O futuro dos jovens não passa, pois, por aqui. Com a partida das gentes (de perto de 12000, em meados do séc. XIX, vamos agora com 3400), parte também a alma florentina. Talvez os novos povoadores, que vão surgindo, e de que sou exemplo, consigam reverter, pelo menos parcialmente, o despovoamento. Mas não conseguirão impedir a partida da alma florentina. Uma ilha das Flores sem florentinos será um outro lugar. Um lugar menos interessante, menos único, mais triste. Na melhor das hipóteses, um local de memórias e recordações, mas sem presente. Um local como tantos outros, e mais umas cascatas.
4. Da Pangeia ecológica – Que procuramos nas Flores? Que procurarão os turistas que nos interessam na ilha das Flores? O que lhe é próprio, ou o mesmo que encontram em qualquer lado? E não é só a cultura, a identidade, que se perde, como disse. É a natureza. Um amigo botânico, alemão amante das Flores, com casa cá, estudioso da flora dos Açores, é pessimista: está perdida a luta contra invasoras como a cana-roca, o incenso ou a tabaqueira. Gostava de ser mais optimista do que ele. De acreditar que ainda se pode, pelo menos, controlar a sua expansão. Mas um mínimo de realismo, um mínimo de abrir os olhos para o que nos rodeia aqui nas Flores, rouba-nos a ilusão: as invasoras ganham terreno. Pior, não parece, além de raras e timidíssimas acções, haver um esforço real de controlar a introdução de novas invasoras. O futuro, a este respeito, não poderia parecer mais negro. As plantas autóctones e endémicas em contracção, cada vez mais difíceis de encontrar. As exóticas a dominar. A ilha das Flores a transformar-se, ano após ano, numa mera continuação, com 143 km quadrados, da Pangeia ecológica que parece dominar o mundo. Uma Pangeia onde, ironicamente, a diversidade biológica aumenta localmente, para diminuir globalmente, onde se encontra a mesma flora em todo os locais com climas e solos semelhantes, onde uma viagem de horas de avião nos levará, com toda a probabilidade, a um local que, sendo outro, em tudo será semelhante ao nosso ponto de partida.
5. Do património construído – Embora já tenha dito algumas palavras sobre o assunto, julgo que a questão do património construído merece um ponto à parte. As Flores não são só paisagem, mas são também paisagem, uma paisagem onde o natural e o humano se complementam, em harmonia. Citando de novo Pedro da Silveira, ele são «as casas onde a sabedoria dos arquitectos nada fez», «os caminhos de corção», «estas paredes dividindo,\contendo,\sobre o corpo do chão,\cerrados e courelas», «e belgas trepando\– duras cordas de cinza –\pelos flancos dos outeiros até onde\permite o vento uma qualquer\utilidade vegetal», «estas terras\revolvidas,\minadas,\com maroiços nas margens e moledos esparsos», «estas árvores,\mais velhas que a memória\dos mais velhos dos velhos:\laranjeiras disformes,\figueiras torcidas\alastrando, subindo;», «e os poços,\as levadas,as pontes»… Mas as levadas estão em desuso, nos poços já não se lava a roupa, as quintas estão abandonadas, as paredes caem, os caminhos são tomados pela monda, quando não macadamizados ou asfaltados, e as casas arruinam-se. Li há tempos (não me lembro, desastradamente, nem do jornal, nem do autor*) um artigo sobre a descaracterização urbana nos açores. O exemplo usado no artigo era o da Fajã Grande. Era um artigo certeiro. Tal como se vai perdendo (muitas vezes, ironicamente, através da influência das escolas) muito do falar florentino («dizemos “feito” mas está errado, deveria ser “feto”», disseram-me uma vez…), também se vai perdendo muito do seu património construído. Faltam acções concretas no terreno, tal como a recuperação de velhos caminhos e canadas, de resto com alto valor turístico, além de valor patrimonial, mas falta também um esforço de preservação da construção vernácula florentina, com as suas casas térreas ou de alto e baixo, numa mistura elegante entre a fachada caiada, com cantarias de basalto ou tufo, muitas vezes pintadas, e o tardoz em osso, com os fornos exteriores, por vezes alçados sobre cachorros, ao nível do piso habitado, com os seus belos palheiros, os seus telhados de telha de canudo regional, protegidas do vento através de uma sementeira de «pregos» de basalto, e tanto mais. Vai faltando o gosto por tudo isto, e vão abundando, ou as modernizações desastradas, ou as tentativas de «rusticizar» as casas, tirando-lhes o reboco caiado, uniformizando tudo num em-osso que nunca existiu senão em conjugação com o branco da cal. E vão abundando também novas construções que nada têm de florentino ou mesmo açoriano, contribuindo para uma uniformização das paisagem e ambientes urbanos que não beneficia ninguém. Em parte, creio, isso decorre de uma infelicidade: preservar, com alma, sai caro, além de exigir mão de obra especializada em saberes que se vão perdendo. Onde estão os pedreiros que saibam ainda construir em pedra? No verão passado, realizou-se, e muito bem, no Pico, uma Escola de Verão de Arquitectura Tradicional, por iniciativa da Intbau Portugal. São precisas mais iniciativas destas. Mas também de acções concretas por parte de todos os envolvidos. Por parte dos arquitectos (todos apreciamos a recolha que resultou no trabalho essencial que é o livro Arquitectura Popular dos Açores, mas não chega), que se cheguem à frente para oferecer à população em geral uma arquitectura, particularmente de reabilitação, que seja simultaneamente de boa qualidade e suportável pelos parcos orçamentos disponíveis. Por parte dos municípios, que orientem e incentivem a reabilitação. Por parte do governo regional, que promova a oferta formativa em construção tradicional. E mais haveria a dizer. Sem um esforço conjunto, pouco sobrará, além de vagas memórias nos poucos postais antigos que ainda se vão encontrando por aí.

Manuel Menezes de Sequeira *

* A Ana Monteiro recordou que o artigo era do Arq.º Jorge Kohl de Carvalho.

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