Diário dos Açores

As profundas raízes açorianas de Fernando Pessoa

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Centenário de João Afonso, I

A Maria João Galvão Teles

2022 foi o centenário do florentino Pedro da Silveira, 2023 é o centenário da micaelense Natália Correia — mas é também o centenário do terceirense João Afonso (Agosto de 1923 - Fevereiro de 2014). Seria uma injustiça deixar ou fazer esquecer a efeméride e assim perder esta ocasião toda especial para conhecer melhor ou até descobrir este bibliotecário, museólogo, jornalista cultural e também poeta que dirigiu instituições culturais do arquipélago (refiro, em particular, a Biblioteca Pública de Angra do Heroísmo e o Museu dos Baleeiros dos Açores, nas Lajes do Pico), autor de Bibliografia Geral dos Açores, 1500 páginas em três volumes impressos em 1995-97, e ainda de dois digitais, póstumos em 2021, e esforçado editor das Obras de Luís da Silva Ribeiro. O egocentrismo exacerbado de Natália, que tantos e lendários embaraços ou incómodos impôs a tanta gente em vida, não precisa, trinta anos depois, de continuar a dominar autocraticamente a plateia, eclipsando outros. A redescoberta e valorização de Pedro da Silveira continuará em agenda (v. «Ainda não acabou!», Diário dos Açores, 12 de Janeiro p.p., p. 9), e depois — ou muito mais do que isso — a riqueza cultural dos Açores ganhará sempre, em quaisquer circunstâncias, em ser entendida como paisagem com muitas figuras: um cânone literário em revisitação permanente, face a uma criação contemporânea que venha à boca de cena exibir a pujança de novas figuras das artes & letras, algumas delas já movendo-se em evidente panorama internacional.
João Afonso coordenou em 1946-59 e 1962-78 as páginas culturais deste mesmo Diário Insular, mas foi n’A União que em Novembro de 1962 publicou aquela que deve ser considerada a primeira inquirição genealógica da família açoriana de Fernando Pessoa. O artigo está identificado na Pessoana de José Blanco (2008, p. 24), porém foi ignorado em biografias do poeta, desde a de João Gaspar Simões às de João Pedro George e de Richard Zenith — o admirável estudioso que há pouco veio aos Açores falar dessa sua obra magna e «pesquisar», disse, acerca dum assunto que, afinal de contas, ficou esclarecido por João Afonso quando o pessoano norte-americano tinha... 6 anos de idade.
Para demonstrar que a obra de Afonso merece ser lida, criticamente revisitada e reunidos os seus dispersos e inéditos, caso existam, vou resgatar e apresentar numa breve série de artigos alguns dos seus escritos, mostrando a relevância e a variedade dos seus interesses açorianíssimos —que o seu ex-líbris confirma —, tanto quanto o leque aberto de jornais e revistas, açorianas e portuguesas continentais, em que colaborou. No caso presente, o artigo d’A União também saiu no Diário de Notícias de Lisboa uma semana depois, demonstrando que buscas em registos paroquiais e velhos jornais açóricos podem esclarecer assuntos de interesse nacional. E do meu ponto de vista tem um bónus adicional: dialoga perfeitamente com «Fernando Pessoa nos Açores em 1902», do seu grande amigo Pedro da Silveira, um trabalho de 1972 que é uma obra-prima de investigação e narrativa histórica, diria mesmo um modelo de excelência para trabalhos desse género (teve reimpressões em 1974 e 1975 e está agora no tomo II de Só o Esquecido é Passado, que ainda aguarda por publicação).
Por último, podemos perguntar-nos se este artigo de João Afonso não terá tido como (segunda) finalidade não deixar passar incólume a seguinte frase, deveras inusitada, senão mesmo ofensiva, de Gaspar Simões na referida biografia pessoana de 1950: «Na ilha Terceira a prosápia de sangue anda à flor da pele e o sentimento de parentesco é exacerbado pelos horizontes plúmbeos que confundem mar e céu, arreigando os seus habitantes a uma viva solidariedade em tradições e anelos». Não havia necessidade!...

Vasco Rosa
Uns avós (açorianos) de Fernando Pessoa

Em nota autobiográfica do ano 1933 [e não 1935], Fernando Pessoa alude, mas sem referenciação, a sua «ascendência geral» como sendo de «um misto de fidalgos e de judeus». Não importa, pelo menos para aqui e para esta ocasião, analisar motivos ou propósitos que tivessem levado Pessoa a uma declaração destas. Tão-pouco se deve perscrutar qualquer intenção de excitar (como talvez gostasse o poeta) fantasias até ao delírio e opiniões até à imaginação. Seja como for, Fernando Pessoa lançou no termo de tamanha responsabilidade como é uma nota autobiográfica o germe da ideia de que contava com sangue de fidalgo e de judeu no seu próprio sangue.
Para um possível esclarecimento, ainda que parcial, do assunto, valeria a pena conhecer o ramo açoriano de Pessoa, sobre o qual se tem procurado falar, mas sem base em fundamento exigível: a genealogia.
Não parece que Fernando Pessoa estivesse muito certo ou sequer tacteasse o conhecimento acerca de quem eram os seus avós açorianos: os Nogueiras e os Pinheiros, aqueles principalmente por virem já assinalados em assentos paroquiais do Setecentos (Ilha Terceira). 
Nunca houve, salvo erro, quem encontrasse a mínima alusão na ascendência de Pessoa a um escritor e tradutor, a um consular, a um abastado proprietário, a um governador militar... E contudo há, nos Açores, um trisavô (Caetano Paula Xavier) que foi governador do castelo de São João Baptista, a gigantesca e imponente fortaleza filipina que domina a cidade de Angra do Heroísmo. Há um bisavô (Abílio Ponciano Nogueira) com posses bastantes para arrematar a Fazenda Nacional, no espaço de poucos anos, oito propriedades. Há um tio-bisavô (João António Nogueira) que é tradutor de teatro francês, em nível tal que uma versão dele é representada e aplaudida em uma récita de profissionais vindos de Lisboa aos Açores, em 1861. E há, bem lá para trás, gentes dos campos radicada na vida de ruralidade como era a da freguesia de Vila Nova, nos extremos do produtivo Ramo Grande, ali por onde a nobreza agrária terceirense se fixara com lavouras de abastança, suficiência de um remedeio.
A árvore genealógica açoriana (ramo materno) é, quanto aos Nogueira, de frondosa sombra ilhoa. Quanto aos Pinheiros, provêm de Coimbra, com entrelaço numa Oliveira (Maria José Oliveira, nascida em Santa Engrácia, cidade de Lisboa). Mas quem são o literato e agente consular, o rico proprietário, o governador militar?
O literato era João António Nogueira, tio do conselheiro Luís António Nogueira, director-geral do Ministério do Reino (o avô materno de Fernando Pessoa). Lê-se em um jornal açoriano (A Terceira, de 25 de Maio de 1861 — de Angra do Heroísmo): «A comédia A Cega foi traduzida do francês pelo nosso patrício João António Nogueira, e é certamente a primeira vez que se representa em português, pois não consta que tenha havido outra tradução: distingue-se esta pela pureza da linguagem e propriedade da versão, merecendo, na verdade, ser uma peça original e não uma tradução.» Foi levada à cena no Teatro Angrense, com o Camões do Rossio.
Encontrei também agora um manuscrito, acerca do qual não se há notícia: a tradução, pelo mesmo João António Nogueira, de As Criancinhas de M. Gilland, primoroso trabalho tanto de versão como de caligrafia. Lá se diz, em dedicatória: «Ao senhor José Augusto Nogueira de Sampaio, em testemunho de amizade, dedica o tradutor J. A. Nogueira. — 1 de Outubro de 1884».
Que João António Nogueira era, por outro lado, pessoa de categoria social, mostram-no também as suas funções de vice-cônsul da Rússia e da República Oriental do Uruguai. Tal como Abílio Ponciano Nogueira, seu irmão e bisavô de Fernando Pessoa, dispunha João António Nogueira de avultados bens em propriedades. Não admira, pois, que D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira fosse um dia a Lisboa com o filho Fernando para liquidar da fortuna os restos da maior quantia. O que causa certa admiração é que ao jovem não fosse transmitida pela mãe e pelas tias uma noção da opulência dos avós terceirenses. Talvez por essa fortuna estar já em declínio, sendo mesmo comprometida...
Passemos ao governador militar Caetano Paula Xavier. Natural de Coimbra, casou com D. Maria Luísa Xavier, de Lisboa, e do casamento nasceu, em Oeiras, D. Ana Maria Xavier, que viria a ser mãe de D. Maria Xavier Pinheiro, pelo casamento com Inácio José Pinheiro (nascido na Praia da Vitória, a Praia de 1799).
A linha deste Pinheiro, contra o que chegámos a admitir, não deve ligar-se à de outros Pinheiros, como os de Vitorino Nemésio. Trata-se, efectivamente, de Pinheiros de Coimbra (Caetano José Pinheiro, casado com Maria Josefa de Oliveira, de Lisboa, freguesia de Santa Engrácia). Sendo assim, como se crê, é nos Nogueiras que se encontram as raízes, profundamente açorianas, de Fernando Pessoa. E há muitos Nogueiras ilustres nas letras e nas ciências, o que talvez não seja ocioso anotar.
O conselheiro Luís António Nogueira é já bastante conhecido dos biógrafos de Pessoa. Avô materno de Pessoa, nasceu a 29 de Dezembro de 1832, sendo filho de Abílio Ponciano Nogueira, também natural da Conceição (8 de Agosto de 1807), tendo este casado na Sé Catedral a 1 de Setembro de 1831 com Maria da Luz, natural de São Pedro, igualmente em Angra do Heroísmo.
O trisavô Nogueira do poeta era também natural da Conceição (31 de Julho de 1775) e ali se consorciou a 8 de Dezembro de 1802 com Rita Delfina do Carmo, filha de gente das Ilhas de Baixo (o pai de São Jorge e a mãe do Pico).
O tetravô — Benito Francisco Nogueira — era um homem do monte, criado na freguesia terceirense da Vila Nova, onde nasceu a 6 de Novembro de 1738, sendo filho de João Vieira Nogueira e de Beatriz Maria, ambos igualmente vilanovenses.
A bisavó, Maria da Luz, mãe do conselheiro, teve por pais António da Costa e Maria do Carmo, os dois de São Pedro, e na sua ascendência aparecem avós terceirenses (três, sendo um da freguesia rural das Lajes) e Bernardino da Costa, de São Roque, da ilha do Pico.
Quais seriam, portanto, nos Açores, os fidalgos e os judeus de que falou Fernando Pessoa na sua autobiografia? Não é fácil pensar que estes seus ascendentes pudessem ser considerados como tal, de onde ter de procurar-se entre os Pinheiros de Coimbra e os Pessoas quem o fosse. 
Que os Nogueiras vindos do monte para Angra entre os fins do século XVIII e os princípios do século seguinte eram gente de teres e de haveres — não restam dúvidas. Abílio Ponciano Nogueira e os irmãos, designadamente João António, viviam bem. Encontram-se, entre eles, comerciantes e armazenistas, e vê-se que Luís António Nogueira se guinda muito alto na jurisprudência e na política do país, depois de ter sido secretário-geral do distrito de Angra. Há uma série de cartas inéditas do conselheiro para o conde da Praia da Vitória, que corroboram neste sentido e indicam ainda que, ano após ano, o avô de Pessoa se manteve a par da vida da sua terra natal, da qual nunca se afastou, até para ser desagradável, tal como o duque de Ávila, ao conde Sieuve de Meneses.
Estes são, nas Ilhas, os avós de Fernando Pessoa. O neto bem merece que se conheçam os seus avós, para que se possam ler inteiramente as suas feições, como convém.

João Afonso


A União, Angra do Heroísmo, 12 de Novembro de 1962.
Tb. in Diário de Notícias de Lisboa,19 de Novembro de 1962, p. 13.
Depois in Açores em Novos Papéis Velhos, Angra: SREC, Dezembro de 1980, pp. 47-51.

Vasco Rosa

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