Diário dos Açores

Melancólicos e esmorecidos

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Não sendo, longe disso, o condimento exclusivo da maneira de ser dos ilhéus açorianos, é conhecido que a melancolia faz parte de muitas personalidades do arquipélago. Sabemos nós e sabem os consultórios. Podemos nomear, claro, a meteorologia como uma das causas para esse azorean torpor (expressão dos ingleses irmãos Bullar, que estiveram por cá uns dias na primeira metade do século XIX).  O isolamento. A distância. A genética. Não confundamos, aqui e noutros lados, melancolia e tristeza. Esta melancolia insular é uma neblina que atravessa almas e humores.
No livro “O Falar Micaelense”, de Maria Clara Rolão Bernardo e Helena Mateus Montenegro, é referido que o tempo, quando tem mau aspecto, é chamado, em São Miguel, de carranca.  Carrancudo é então o tempo que apresenta carranca, que ameaça chuva. Um termos que, como sabemos, se aplica também às pessoas. “O padre Flávio é um bocado carrancudo. É de família. Já o pai dele era assim…”. “E o tio? Era conhecido pelo João Agoniado”. Agoniado é inquieto, sim. Angustiado.
Dos termos usados nos Açores para aludir à melancolia, destaca-se o termo esmorecido, que é palavra nacional, mas nunca ouvi fora desse pedaço. “Esmorecide” é usado para classificar alguém que transporta melancolia. Esmorecimento.  Não se diz que alguém é esmorecido mas que anda esmorecido. “Desde que começou o Outono, o João Carlos tem andado esmorecido…”. Poderá ser uma ocorrência – uma perda – mas também pode ser algo difuso, não identificável no imediato, misterioso. Há uma beleza na palavra emorecer e na sua origem. Esmorecer vem do latim, emorescĕre, frequentativo de emōri, “morrer”. Não quererá isso dizer que o João Carlos seja um morto-vivo que se esteja a passear pelas canadas. Apenas que lhe tem faltado aquela vitalidade que se lhe conhecia. Diz que ajuda pelo facto de começar o dia a tomar um “caóle”. Um calicezinho micaelense de tipo alcoólico. O antidepressivo do laboratório das tascas. Um “mata-bicho”. Quem sabe se, por detrás do seu modo prático de ser, não é um poeta e sofre daquele spleen baudelairiano em versão vulcânica. Que é pela sua vocação lírica que tem andado de beiças. Que é por ambições literárias que está naquela consumição.
Ainda no livro “O Falar Micaelense”, encontra-se outra bela palavra: insofrimento. Que significa “grande sofrimento”. Admito que – e se calhar não estou só – estou mais familiarizado com a modalidade “desinsofrimento”. Ou, mais em concreto, com os adjectivos “desinsofrido” e “desinsofrida”. “A Amélia tem andado desinsofrida. Tem andado agitada. A precisar de algo. Não sabe de uma simples queixada da vila ou de uma viagem ao Dubai”.
Para os abatimentos do espírito há adjectivos como embezerrado, apoquentado (sem apoquentações, preocupações) molestado  (com moléstia, “um mal físico ou moral”). Ou o vulgar aborrecido. Que se estende a mal-estares físicos. Lembram Maria Clara e Helena a hipótese “aborrecido do estômago”. Imaginemos uma variação. Deprimido do pâncreas. Ou, para sermos românticos, amuado do coração.
Para contrabalançarmos esta ideia do esmorecimento açórico, para a semana irei trazer algumas quantidades de veneno. Um levantamento de insultos.  Daqueles que são transmitidos de geração em geração como a mais preciosa das heranças, a usar quando necessário. Ou seja: todos os dias.
Basta que sim.

Nuno Costa Santos

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