Diário dos Açores

Do medo à indignação

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Durante as últimas décadas, fruto de alguns órgãos de comunicação social que se conseguem manter, minimamente independentes, têm sido divulgadas suspeitas da prática de uma criminalidade económico-financeira que grassa no aparelho do Estado. Desde recebimentos indevidos, subornos, tráfico de influências, concursos feitos à medida, nomeações para cargos públicos de personalidade de duvidosa idoneidade e competência e um sem fim de outros comportamentos profundamente lesivos do Estado de Direito.
Estamos mais uma vez entorpecidos (isto para não utilizarmos outros qualificativos), neste lamaçal que fastidiosamente nos imobiliza enquanto cidadãos e com o primeiro dever de honrar pai e mãe! Hoje confrontados com uma cascata de casos, damos por nós a pensar como foi possível que se tivessem cristalizado tantos comportamentos entre os detentores do poder, da esquerda à direita?
A resposta mais óbvia resulta do facto das sociedades serem compostas por indivíduos detentores de uma herança marcada pelo medo, tal como defendeu Theodore Zeldin. É precisamente esse medo de não ascender, esse medo de não progredir, esse medo de poder ser prejudicado numa ou outra situação que tem levado os indivíduos à conformação e não denúncia das situações suspeitas de que tenham conhecimento.
 É difícil encontrar explicações racionais para tantos acontecimentos apáticos que num ápice nos atiram para a irracionalidade de pensar que nada funciona com a devida transparência. Nada se acerta. Não passamos de sorumbáticos cidadãos de um reino sem rei, sem glória e com um futuro profundamente comprometido pela irresponsabilidade do presente, mas satisfeitos com um cozinhado pobre de ambição.
Este furacão que enxovalha Portugal nos diferentes canais televisivos, torna a lava mais negra que o próprio negro da lava. Já deveríamos estar preparados para resistir aos medos da nossa existência e coletivamente não tolerar o obscurantismo das relações de poder. Por momentos temos a ilusão de que tudo se passa a dois mil quilómetros de distância e que cá tudo é diferente. Quando por um ou outro motivo verificamos não ser assim, a realidade torna-se dolorosa e aí percebemos que existe por todo o lado uma natureza e uma cultura que teima em resistir, em primeiro lugar, aos ideais da ética.
Acreditamos que por cá a falta da visibilidade dos comportamentos censuráveis entre os detentores do poder deve-se sobretudo a uma comunicação social excessivamente dependente do poder da Região. Felizmente, o tempo se tem encarregue de clarificar o obscuro. Sempre mais tarde, normalmente de fora para dentro, inexoravelmente tudo se clarifica e demonstra que todas as modas e modos chegam aos Açores.
Tendo Rousseau (1762) afirmado que «O homem nasceu livre e em toda a parte vive aprisionado. O que se julga o senhor dos outros não deixa de ser mais escravo do que eles...», estava profundamente convicto disso.
Decorridos 261 anos, o pensamento de Rousseau continua firme e a demonstrar que ainda não somos capazes de resistir à sobreposição dos ideais pelos interesses pessoais muito para além dos interesses coletivos a que estamos obrigados pela força do «contrato social» que nos une!
Por tudo isto, todos somos culpados e só a indignação nos salva.

Alberto Peixoto *

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