Diário dos Açores

A Saúde não é um negócio é um direito universal

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As linhas mestras de orientação dos serviços de saúde regionais foram traçadas num encontro em Angra, promovido pelo então Diretor Regional de Saúde, José Lopes da Nave.
Recordo que, entre outros, dele fizeram parte o saudoso jornalista Gustavo Moura, o professor Rubens Pavão, o Dr. Homem Gouveia. Foi uma discussão muito interessante, recorrendo à auscultação e apuramento de opiniões de técnicos e de cidadãos conhecedores da realidade social.
O Governo pretendia então saber qual a prioridade do Serviço Regional de Saúde1, se dar maior atenção aos cuidados de saúde primários, se aos cuidados diferenciados.
Importa recordar que em 1982, os três hospitais estavam instados em edifícios antigos e desadequados, o pessoal médico era reduzido e envelhecido, faltavam equipamentos e pessoal técnico e o orçamento regional não tinha capacidade financeira para responder a tudo em simultâneo.
Do outro lado, a opção pelos cuidados de saúde primários. Nela votaram sobretudo os “leigos”, entre os quais me encontrava, mas não conseguimos a maioria dos votos. Os hospitais concelhios, instalados em edifícios das Misericórdias encontravam-se num estado clamoroso. Faltavam médicos, enfermeiros e simples meios de diagnóstico.
Passados 40 anos, reconheço que a opção pelos serviços hospitalares trouxe grandes vantagens. Foi a partir de então que aumentaram as especialidades médicas e o pessoal de enfermagem, se adquiriram novos equipamentos para corresponder aos avanços da medicina e se começou a pensar no novo Hospital de Ponta Delgada. Em simultâneo, respondeu-se às situações mais clamorosas dos centros de saúde.
Os tempos eram outros, certamente, mas muito foi feito.
A situação sócio-económica, porém, alterou-se, profundamente e o envelhecimento e despovoamento de algumas ilhas agravou-se.
Eis-nos, agora, perante problemas graves resultantes do nosso muito lento crescimento económico, gerador de níveis de pobreza que nos colocam no fundo das tabelas.
 Em meu entender, a solução tem de passar por uma séria reflexão sobre as verdadeiras causas desta situação e não por soluções preconcebidas ou importados de outras latitudes.
Somos nove ilhas e os cuidados de saúde devem ser acessíveis a todos os açorianos, onde quer que eles vivam.
O Programa UE pela Saúde 2021/2027, foi adotado para responder à crise pandémica e para reforçar outras situações semelhantes. Tem um orçamento de 5,3 mil milhões de euros e um dos seus principais objetivos é abrir caminho a uma União Europeia da Saúde2 em quatro vertentes:
-Melhorar e promover a saúde;
-Proteger as pessoas;
-Permitir o acesso a medicamentos, dispositivos médicos e produtos importantes em situações de crise;
-Reforçar os sistemas de saúde.
Embora “Os Estados-Membros da UE são [sejam] responsáveis pela organização e pela prestação de serviços de saúde e de cuidados médicos. O papel da UE no âmbito da política de saúde é, por conseguinte, complementar ao das políticas nacionais.”3
Existem, portanto, apoios financeiros não só para proteger as pessoas da UE em regiões transfronteiriças, como para assegurar os direitos dos doentes deslocados ou não.
Nos últimos dias ouvimos o responsável pela tutela da Saúde falar das dificuldades financeiras e do subfinanciamento do SRS e interrogar-se “até que ponto este sistema de saúde, da forma como está, supostamente gratuito e universal, é sustentável financeiramente para o Estado”.
A “dúvida lançada para reflexão” prefigura a inconstitucionalidade (artº 64,§3), pelo que o melhor é avançar por outras vias.
Não me parece razoável que um Serviço regionalizado em 1982, deva agora ser suportado ou financiado pelo Estado, com base numa análise de sobre-custos resultantes da ultraperiferia insular.
A meu ver, existem outras alternativas. Uma delas é a própria União Europeia.
Um grupo de eurodeputados portugueses apresentou em novembro ao Parlamento Europeu uma proposta de resolução para a criação de um POSEI para o setor dos Transportes, solicitando à Comissão competente que inicie o processo.
Face à situação que se viveu durante a pandemia, teria sido também razoável que se envolvesse no mesmo pacote a área da saúde devido às dificuldades levantadas pela ultraperiferia e pela insularidade.
Ademais, sabendo-se que os Açores são um destino cada vez mais procurado por cidadãos da União Europeia, a criação de um POSEI-SAÚDE contribuiria para garantir aos visitantes transfronteiriços melhores cuidados de saúde, como defende o programa “UE pela Saúde 2021-2027”. Esses apoios integrar-se-iam no âmbito do princípio da Coesão, traduzida nos artº 168 e 349 do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). Este último artigo consagra o Estatuto de Ultraperiferia o qual tem abertura suficiente, segundo a Resolução do Parlamento Europeu, de 6 de julho de 2017,  para responder a outras áreas ainda não contempladas.4
O Serviço Regional de Saúde, segundo a Constituição (artº 64) é a resposta do Regime Autonómico ao direito fundamental à vida de qualquer cidadão, e deve contemplar a proteção da saúde e o dever de a defender e promover.
Associar a necessidade de reformas da saúde à sua sustentabilidade, como se de um setor económico privado se tratasse, não é correto. Levado ao extremo, os poderes públicos contribuiriam para o agravamento das doenças, da fome, da doença, do suicídio e da morte.
Há outros parâmetros que devem ser analisados, o principal dos quais é o direito à vida e as respostas dadas pelos serviços públicos que se foram desadequando ao envelhecimento da população, ao despovoamento e à tomada de consciência pelos cidadãos dos seus direitos sociais.
Repensar a prestação pública dos cuidados de saúde sem questionar a funcionalidade e resposta dos serviços existentes, a saber: três ilhas com hospitais e as restantes seis com graves carências na prestação dos cuidados de saúde é um erro de avaliação de consequências trágicas.
O problema da saúde nos Açores passa sobretudo pela noção de bem-estar e de bem-comum  – competência primeira de Estado e da Região. Depois pela gestão correta dos recursos existentes e por opções que proporcionem a todos os açorianos a igualdade de direitos na Região, no País e no seio da União Europeia a que pertencemos.
São estes os princípios constitucionais que devem nortear a norma da “proteção da saúde e o dever de a defender e promover.”
1Criado por Decreto Regional n.º 32/80/A, de 11 de Dezembro
2https://health.ec.europa.eu/funding/eu4health-programme-2021-2027-vision-healthier-european-union_pt
3https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/eu-health-policy/
4https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:52017IP0316

José Gabriel Ávila*


*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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