Diário dos Açores

Uma paixão que de simples nada tem!

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“Durante esse período, todos os meus pensamentos, todos os meus atos eram uma repetição daquilo que tinha acontecido antes. Queria forçar o presente a voltar a ser o passado aberto sobre a felicidade.”

Quando nos apaixonamos, geralmente, a sensação é bilateral, vem de lá para cá e de cá para lá. E isso basta para tornar uma paixão em algo simples.
No entanto, e mesmo que nos pareça que a outra parte está igualmente apaixonada, nem sempre assim é. Mesmo quando nos envolvemos total e fisicamente com a outra pessoa.
Descobri a Annie Ernaux, Prémio Nobel de Literatura 2022, com o livro Uma paixão simples e, sinceramente, só desejei que no final o número de páginas se multiplicasse muito, mas muito mais! Sei que já disse isso algumas vezes, sobre outros livros, mas neste foi mesmo isso que senti, só que com mais intensidade do que o habitual; não por me ter parecido que a história fique quebrada ou dividida, ou até mal explicada, mas porque a narrativa é unilateral, como é unilateral o sentimento desta personagem.
A história, narrada na primeira pessoa e em jeito de diário, conta uma parte da vida de uma mulher que perde a cabeça por um homem, não o primeiro da sua vida, e que faz do seu dia-a-dia uma eterna espera por ele, independentemente de ele ser casado e de ela ser, em todos os sentidos, a sua amante (apenas)! Já mulher feita e mãe, esta mulher não tem limites, ama loucamente, e nem sequer pensa ou valoriza se o sentimento é recíproco. Basta-lhe aquele homem, com tudo de bom e de mau que ele tem, qual vício irracional e passional!
Paixões proibidas, provavelmente, todos já tivemos, ou temos, mas não como esta mulher aqui descreve. Esta paixão é diferente. E, afinal de contas, é simples, porque ela a descreve sem tabus, sem vergonhas, sem qualquer receio de represália ou de reconhecimento por parte dos seus leitores de quem está espelhado nestas páginas.
Um livro de tamanha sinceridade, numa tão curta descrição literária, só pode cativar o leitor e reclamar todo o seu respeito pelo sentimento aqui vivido. Contraditório, eu sei, mas foi mesmo isso que senti: respeito por algo que não compreendo; afinal, não são todos os que admitem, mesmo nos monólogos na sua cabeça, o que esta mulher admite nestas simples 59 páginas.
Por outro lado, apeteceu-me rasgar esta personagem feminina ao meio, se é que isso é possível, e fazê-la ver que vale muito mais do que esperar que um telefone toque ou do que sonhar, ou quase delirar, com uma vida realmente simples e apaixonada, em que não fosse preciso mentir nem, sobretudo, esperar.
Mas, também me apeteceu descobrir quem era este homem, que história teria ele para aceitar, também, viver em suspenso com duas vidas, duas mulheres, duas ilusões!
Annie Ernaux, que merecidamente recebeu o Prémio Nobel da Literatura 2022, cativou-me e estou certa que o fará com todas as pessoas que se arriscarem a ler os seus livros e a sentir, como eu senti, o poder da leitura e, por outro lado, do registo desenfreado dos nossos sentimentos num simples diário. Que terapia fantástica é escrever!
As paixões são simples, afinal, nós, humanos, é que não!

Boas leituras!

Patrícia Carreiro*
*Diretora da Livraria Letras Lavadas

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