Diário dos Açores

Diário dos Açores: 153 anos de Vida

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O primeiro jornal que me lembro de ter visto na minha vida foi em casa de meus pais, na Praia da Vitória, ilha Terceira; era eu bem pequeno, teria uns cinco ou seis anos; estávamos em 1950,1951. Chamava-se A União, era propriedade da Diocese de Angra do Heroísmo, e foi publicado pela última vez em 31 de dezembro de 2012. Como os meus pais eram assinantes, todas as tardes – era um vespertino – o carteiro batia à porta para o entregar. Nessa altura estava eu bem longe de imaginar que, muitos anos depois, ia escrever para jornais e seria professor de “Ética e Direito da Comunicação”, numa licenciatura em Comunicação Social da UCP, trabalho que me levou a pensar nas diversas e complicadas problemáticas que a atividade jornalística envolve, de que poucos têm plena consciência e, ainda menos, refletem sobre elas. Os anos de docência daquela unidade curricular obrigaram-me a estudar e discutir as dificuldades/problemas com que se confrontam os profissionais da comunicação social, em especial os jornalistas. Aquelas dificuldades/problemas parecem, por vezes, inexistentes, mas, outras vezes, apresentam-se com toda a sua crueza e não são fáceis de resolver. As boas notícias são normalmente fáceis de dar, embora mesmo estas, quando bem analisadas, acabamos sempre por descobrir que terão consequências negativas para alguém. Como diz o ditado: “não há bela sem senão”. Para refletir sobre as dificuldades/problemas da atividade jornalística, é conveniente partir daquilo a que alguns chamam o fim intrínseco do profissional da comunicação social e atender ao meio em que o trabalho para atingir esse fim se desenvolve.
O trabalho, a missão do profissional da comunicação consiste em «possibilita[r] a plenitude do direito humano à informação» (ECHANIZ, Arantza; PAGOLA, Juan -  Ética de la comunicación. Col.: Ética de las Profesiones. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2005, p. 45). O ser humano é um ser de relação, é um ser aberto ao outro, pelo que a comunicação lhe é intrínseca. Para viver essa relação, que é troca de informação, o ser humano precisa de ser informado e, na satisfação dessa necessidade, o profissional da comunicação tem um papel de relevo. Para desempenhar essa tarefa, o profissional tem de recolher informação, realidade que é superabundante no mundo de hoje. O profissional pode procurá-la, por exemplo, analisando a sociedade que o rodeia, recorrendo à informação fornecida por agências nacionais e intencionais que se dedicam a fornecê-la. Na atualidade, os profissionais não têm dificuldade em encontrar informação para publicar; a dificuldade está na necessidade de, no meio do turbilhão da informação disponível, selecionara que tem interesse, a que é importante para os destinatários do seu trabalho: os seus leitores, ouvintes ou telespetadores. E essa seleção não pode ser aleatória; tem que ter critério. E aqui é que está a grande dificuldade. Que princípios devem presidir a essa seleção? Esses princípios devem estar ancorados em valores, por um lado, e, por outro, devem ser concretizados em regras. Mas que valores serão esses?
Há uma resposta que, na nossa sociedade, é geralmente aceite: os valores que devem pautar o agir no espaço público, no qual trabalha o profissional da comunicação social, são os que constam da “Declaração dos Direitos Humanos”. Se, por um lado, essa resposta merece amplo consenso, por outro, é bastante vago na sociedade contemporânea, uma sociedade pluralista, imensamente rica culturalmente, que nos abre um mundo quase infinito de modos de viver os valores. Vivemos em sociedades pluralistas, muito pouco homogéneas culturalmente, mas essa variedade, que é uma riqueza, repito, suscita a seguinte dificuldade: tudo será aceitável? Quando estamos perante o inaceitável? Quando é que a diferença ultrapassou o tolerável?
Apesar de todas estas dificuldades que a questão dos valores suscita, acrescentando, ainda, o facto de os mesmos valores poderem ser vividos de modos diferentes – os modos de viver os valores mudam mais do que a própria escala de valores – o profissional da comunicação social não pode deixar de fazer uma seleção entre a imensa quantidade de informação de que dispõe, para isso, procura formular regras que o ajudem a concretizar os critérios de seleção, de que vou dar um exemplo.
Do corpo docente do curso de “Ciências da Comunicação” em que lecionei, fazia parte um jornalista que hoje ocupa lugar destacado a nível nacional, com quem discutia muitas vezes problemas de comunicação social. Um dia, numa das nossas conversas, abordámos a problemática dos critérios que devem pautar a seleção das notícias a publicar. Para não ficarmos no mundo das ideias, chamei à colação um caso concreto que se passa na RTP: qual é o critério que os jornalistas devem usar na seleção das notícias a passar no “Portugal em Direto” e no” Telejornal” das 20 horas? Nunca mais esqueci a resposta: “o critério é o valor-notícia”. Olhei atentamente para os seus olhos, fiz uma pausa, e perguntei: “o que é isso?” A resposta veio franca, acompanhada de um sorriso: “não tenho e provavelmente não há uma resposta cabal para esta pergunta. É o critério que é apontado”. Sei que é este o critério e sei que ninguém é capaz de acrescentar qualquer explicação totalmente satisfatória. Dias depois, refletindo sobre aquela resposta, ocorreu-me que o recurso ao “valor-notícia” enferma das mesmas dificuldades do recurso à expressão “é uma questão de bom senso”. Quando uma discussão se vai prolongando e parece não encontrar uma saída, há sempre alguém que emite a sua opinião e justifica-a dizendo: “é uma questão do bom senso”. Perante esta afirmação, pergunto logo para comigo: “mas o que é o bom senso?” Descartes inicia o seu famoso Discurso do Método com estas palavras: “O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa não costumam desejar mais bom senso do que têm.” Ou seja, cada um está satisfeito com o seu e pensa que é o mais perfeito. Quando ouço “é uma questão de bom senso”, penso logo: terminaram os argumentos!
Apesar da complexidade da problemática teórica acima abordada a propósito do “valor-notícia”, podemos afirmar, sem medo de desmentido, que os jornalistas do Diário dos Açores, normalmente, ao longo do tempo, acertaram na seleção dos materiais a publicar, porque só assim se explica que o jornal faça hoje 153 anos. Atingir uma tal longevidade, só foi possível porque os leitores reconheceram bom critério nas escolhas feitas pelos profissionais da publicação. Na pessoa do atual diretor, Osvaldo Cabral, sinceros parabéns a todos!

José Henrique Silveira de Brito *

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