Diário dos Açores

Silveira lido por João Afonso

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Centenário de Pedro da Silveira, XXI

Não é só a recepção internacional da obra de Pedro da Silveira que ainda falta globalmente identificar e incorporar no complexo da sua obra literária. Que dizer das colunas de crítica saídas nestas ilhas e às quais ninguém parece ter ligado patavina? Bem sei que, à data, os activos e laboriosos — entre outros — Vamberto Freitas, Urbano Bettencourt ou Luiz Fagundes Duarte eram ainda demasiado moços e pouco ou nada podiam «sentir» destas coisas; todavia, caso neste meio século um levantamento exaustivo da imprensa açoriana tivesse sido feito, beneficiando a história cultural dos Açores, a surpresa de hoje encontrarmos estes dois textos pela primeira vez não poderia ter ocorrido.
Será que a ninguém ocorreu tentar ver como foi que — questão elementar — o primeiro e célebre livro de poemas de Silveira foi anunciado, criticado ou recenseado por estas ilhas adiante? Não elucidaria isso, cabalmente, o tipo de ambiente cultural açoriano do imediato pós-guerra? Seria excessivo supor que à entrada da década de 1950, estando constituídos os anuários dos quatro institutos culturais e históricos, ou que, tanto em Angra do Heroísmo como em Ponta de Delgada, pares locais de jornais de tendência disputando clientelas políticas, ideológicas ou estéticas cravassem dente ao que este ou aquele autor fosse publicando em livro? Enquanto tal inquérito sistemático não for feito, e — mais ainda — enquanto o epistolário entre alguns pares estiver por conhecer em recolhas anotadas, o designativo «Arquipélago de Escritores» continuará a ser um muito virtuoso título para festivais literários, e um chamariz publicitário que brilha, mas jamais atingirá a arquitectura discreta, subterrânea ou submarina duma rede de afinidades e desavenças literário-artísticas ao longo de décadas, ilhas e figuras mais ou menos isoladas, que importa fazer emergir, enquadrando-as no contexto da época e das relações pessoais e intergeracionais que eles agora, algo esquiva e pobremente, nos transmitem.
E, por outro lado, como o artigo de Novembro de 1962 igualmente sugere — e nele estando já envolvida certa parte de amizade pessoal —, terá ainda de se ver até que ponto o trabalho de registo etnográfico de Pedro da Silveira foi ou não devidamente tido em conta, sobretudo depois do desaparecimento da figura central de Luís da Silva Ribeiro, em Fevereiro de 1955. Não foi a campanha de 2022 bastante elucidativa acerca da vida e obra de Pedro da Silveira a ponto de picar, na Universidade dos Açores, alguém disposto a fazer tese sobre a sua recepção açoriana, nacional e internacional?...
Em todo o caso, agrada verificar que Pedro foi tendo em João um leitor atento, num amor partilhado à terra-mar comum — e ao muito que sempre precisa de ser feito (não tarefa facilmente atribuível a terceiros, mas coisa de cada qual segundo as suas possibilidades — algo que ambos, cada um à sua maneira, largamente fizeram).

Vasco Rosa

«A Ilha e o Mundo», 1952

Algo de muito convencional aflora e persiste nos versos de Pedro da Silveira! Algo de poesia perpassa neles e os torna definitivos no sentimento açoriano expresso, hoje mais do que nunca preocupado em definir a nossa vida, os nossos ambientes, a nossa idiossincracia.
Para se ser poeta é preciso ter os dons da sinceridade, e da inspiração, mais do que técnica da poesia, e muitísimo mais do que ciência de medir sílabas e rimar. Assim, Pedro da Silveira só é poeta quando é sincero, conta artisticamente a verdade experimentada ou inspirada e deixa que o poder de comunicação se insinue antes de se impor à força.
Quando Pedro da Silveira se não apercebe que está transmitindo uma  mensagem, isto é quando não quer fazer mensagens; quando abandona preconceitos antiformais; quando deixa de preocupar-se em dizer verdades (imaginárias ou reais), ei-lo, na verdade, no caminho certo. Quem o conheceu irrequieto, burguesmente antiburguês, «diletante» de cavalarias disformes (ou assim o considerou), deve ter começado a abrir o livro dos seus poemas com um céptico sorriso. Afinal, Pedro da Silveira oferece-nos uma obra francamente cuidada e, mais do que isso, cuidadosa, simpática até, digna de ter-se em conta.
Diz o poeta: «Talvez um dia a minha poesia seja | simples e natural | [...] |Ai | simples e natural | como uma canção de berço». Por que não é realmente sempre assim tão natural e límpida a poesia de Pedro da Silveira? Apenas por um motivo — o dos pruridos da  convenção da arte com intuito social.
Que sabe a Poesia destes intuitos! Quando a Arte quis ser Arte Social, deu-nos monstros picassistas, à parte a conquista dos novos valores cromáticos! Que sabe a Poesia de ideias filosóficas? Decerto a Poesia pode e deve ter conteúdo substancial, senão seria amorfa. O que não pode é deixar de ser Poesia!...
O certo é que Pedro da Silveira peca e transvia-se (nem sempre) e parece, por vezes, que desconhece o substratum poético, parece, sem dúvida, que desprezou a génese e a via da inspiração.
Ao falar da «Lembrança de San Miguel-o-Anjo», torna-se sublime e aureola-se de lirismo. Ao desdobrar o quarto «motivo da Fajã Grande», diz muito do que já sentimos e sentimos sempre. Mas tudo cai por terra ao fechar-se seu livro A Ilha e o Mundo. O poeta «rasga-se» a si próprio e desdiz-se: «então, pátria, será nosso o teu destino!», isto é: só quando a ilha deixar de ser o que é (fonte de poesia), fazendo-se então ao seu destino!... Incompreensível por impossível e por incoerência! (Compare-se com Vitorino Nemésio que, «ao fim de todos os roteiros, tem saudade da ilha nativa, que assume ao longe, cercada pelo mar, a significação e o símbolo das alegrias estáveis e fiéis», in Brotéria, vol. LVI, fasc. 3.)
Dos últimos livros dos poetas açorianos recentes, este é o melhor, o mais inteiriço, embora Eduíno de Jesus seja Poeta doutra extensão. Pedro da Silveira abriu e fechou um ciclo com a presente obra. É que isto de poesia com características de insularismo é tentativa que só deixará de ser aborto quando a sinceridade e a inspiração lograrem o lugar primacial — único — da Poesia.
Pedro, se atender a estes factores irrecusáveis que a subtileza artística de Eduíno fixou, apesar de tudo, no seu livro Caminho para o Desconhecido (que fineza de título!...), há-de abrir o seu segundo ciclo poético em que a poesia nada ficará devendo à Poesia!...

P. S.— Atiram-me à cara que não trato, por igual, os nossos poetas, favorecendo uns e ferindo outros. Ainda não recebi reclamações dos hipotéticos ofendidos e, pelo contrário, vêm-me oferecendo os seus livros, ao que parece, com certa expectativa. Se elogio Vitorino Nemésio, António de Sousa, José de Bruges, não os elogio em todas as suas produções. Se me contento com quanto Eduíno de Jesus e Pedro da Silveira (dos novos) publicam, digo-lhes porquê. Será por isto que me aturam? De qualquer forma, contem comigo, cá no Arquipélago.

«Materiais para um Romanceiro da Ilha das Flores», 1961

Em um trabalho que não chega às vinte páginas, Pedro da Silveira publicou os seus primeiros Materiais para um Romanceiro da Ilha das Flores, que o Núcleo Cultural da Horta editou no número do respectivo boletim do ano 1961.
Não decerto pela diferença de tomo, este excelente contributo de Pedro da Silveira fez-nos lembrar o monumental Romanceiro Português de José Leite de Vasconcelos, com que se comemorou o centenário do Mestre. E fez-nos lembrar pelas palavras introdutórias da autoridade peninsular que é D. Ramón Menéndez Pidal, nas quais se anota ser de importância capital o registo de alguma versão única de romance inteiramente desconhecido antes, como era o caso, em Leite de Vasconcelos, de Celinos e de Vergílios, pois que isso mesmo vem mostrar quanto se pode ainda esperar da exploração afincada e diligente dos filões puros.
Ora, Pedro da Silveira, em magras páginas muito embora, densas porém em todo o caso, traz a lume nada mais nada menos do que alguma coisa de desconhecido, não importando saber, por enquanto, se é pouco ou muito. Mais tarde se saberá quanto ele ainda conta para publicação.
Também Leite de Vasconcelos reconheceu um dia que o seu Romanceiro Português de 1886 era, afinal, um «romanceirinho». E, no entanto, muito havia nessa obra de há três quartos de século...
O autor dos Materiais, não podendo contentar-se com ouvir dizer que Teófilo Braga havia publicado tudo o que valia a pena publicar nos Açores, recolheu na sua linda ilha o que entendeu, certo de que D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos tinha razão ao falar da revelância dos textos «suplementares» («contribuição de grande valor, pois constituem mais de uma vez o laço procurado debalde entre as diversas redacções do mesmo romance e demonstram frequentemente ad oculos como é que a gente-povo deteriora e vulgariza verdadeiras obras de arte, sempre que não haja circunstâncias peculiares que as preservou de estrago»).
Culto, desempoeirado, identificado com o saber à europeia, baseado no estudo e na comparação, Pedro da Silveira formula um apelo, sobre cujo resultado diz sentir-se, entretanto, desiludido: o de que os folcloristas açorianos se deixem de bizantinas teorias e oubliquem quanto guardam em arquivo, seja embora pouco, simples fragmentos de romances; e que recolham outros — enquanto é tempo.
Aludindo ao «excelente trabalho» que são os Cantares Açorianos do Padre José Luís de Fraga [1902-68], inseridos na revista Atlântida, de Angra, o autor dá sinal de honroso apreço e manifesta, ainda assim, uma esperança de frutificação do seu oportuno e apaixonado apelo.
Contos e lendas, superstições e crendices, adágios e rimas várias, calendário popular, teatro popular, jogos e adivinhas, romances e xácaras, novelística, provérbios, canções — tudo isso faz parte de uma riqueza cujo conhecimento bem merece ser ampliado.
Este trabalho de Pedro da Silveira diz da importância que assume o conhecimento  de materiais do género entre nós.

João Afonso
Diário Insular, Angra, 17 de Março de 1953, pp. 2, 3.
Ibid., 15 de Novembro de 1962, pp. 2, 3

Vasco Rosa  *

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