Em dias de Carnaval terceirense – assisti a bailinhos na Agualva, no Raminho, em Santa Bárbara e em São Carlos – ouvem-se muitas expressões da Terceira e algumas delas, digamos, de alcance regional. Uma das que me ficaram foi a deliciosa “não tem tafulho”. Que existe também em São Miguel, sim. E noutras ilhas açorianas. “Não tem tafulho” é um modo de dizer “não tem solução” ou “não tem conserto”. O uso desta expressão – e já se percebeu que escrevo estas prosas para evocar termos e expressões, de cá ou por cá conservadas, que indiquem maneiras de ser – remete para uma certa sapiência insular. Há coisas que não têm tafulho. A ventania, a humidade e o bairrismo. A inflação? Esperemos que sim. Se não isto, até ao fim do ano, vai ser uma grande espoleta. Modo de designar a melancólica falência das carteiras. Ou uma grande espiga. Uma tormenta. Um engulho maior.
O pragmatismo insular, no caso micaelense, revela-se também no uso da sempre fascinante expressão “vou fazer versos”, da qual me lembrei na temporada dos bailinhos. “Vou fazer versos!”, em São Miguel, quer dizer “vou andar aqui a perder o meu tempo!” Se um empreiteiro, no início de uma obra, dispuser de uma série de desculpas para os atrasos, é apropriado afirmar-se “vou fazer versos!” segundos antes de o despedir. Em terra de poetas, desdenha-se, na hora do aperto e da urgência, da arte de fazer versos. Remete esse dado para uma diferença entre São Miguel e a Terceira. A seriedade micaelense versus o lirismo folgazão terceirense. Nos bailinhos, com texto assente no verso com rima, está sempre subjacente a expressão “vou fazer versos”. No Carnaval quem não fizer versos deve ficar em casa a ler Kant.
Com facilidade, um poeta, em São Miguel, é chamado de “varela da cabeça” (aéreo das ideias) ou “destarelado”, sem juízo. Um bardo promotor do bocejo e do enfado, espécie não assim tão rara na paisagem das ilhas, é uma chaga, chato como a potassa ou mesmo uma “gand’ impôla”. É socialmente aceite que um versejador aborrecido leve a que uma pessoa pegue no sono – adormeça sem querer e sem esforço. Até pode ser um bom substituto para um indutor da sonolência.
O “vou fazer versos” pode vir antes da expressão “vou terminar a minha vida”. Podia pensar-se que significa que se considera que é melhor acabar com a vida do que aturar um mau poeta. Que é melhor morrer do que levar com uma metáfora escusada. Há razões para o anseio, sim. Mas não é o caso. Terminar a vida é, nos Açores, despachar-se com os assuntos entre mãos. É arregaçar a manga. É não adiar os afazeres. É botar sentido, expressão que figurava no título de um dos bailinhos a que assisti. “Botar sentido”, ou seja, tomar atenção. O mesmo que, para usar o cada vez mais frequente jargão da auto-ajuda, “ganhar foco”.
Diga-se que a aversão ocasional à poesia tem um contraponto no gosto pelo género ensaístico. O gesto da pancadaria “mesmo deveras”, aquela pancadaria que deixa o adversário sem hipóteses de citar Antero, é conhecido como “dar um ensaio”. Um ensaio de porrada, sim, com reconhecido espaço nas estantes do dia-a-dia.
Nuno Costa Santos *