Diário dos Açores

Romarias quaresmais

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Se Manuel Inácio de Melo (MIM) fosse vivo, o “Diário dos Açores” deste sábado daria conta dos ranchos que hoje saíram em romaria, do número de “irmãos” e dos locais de pernoita para facilitar o seu alojamento.
Entrevistei-o para a RTP-A em 1982 e já então era nonagenário. Apaixonado pelas Romaria, MIM apresentou-se de xaile enramado, como se fosse mais um “irmão” da caminhada. 1
No mesmo trabalho ouvi também o Mestre de romeiros da Matriz de Ponta Delgada, António da Silva, administrador do então BCA que me informou que no início da revolução republicana os anti-clericais proibiram que os ranchos passassem pelo centro da cidade de Ponta Delgada.
Após dois anos de interregno devido à pandemia, estima-se que 55 ranchos, com cerca de dois mil homens, voltarão a percorrer as 65 paróquias e uma centena de lugares de culto da Ilha de São Miguel. Dois desses grupos virão do Canadá e serão constituídos por elementos oriundos também dos EUA e Bermuda.
O poeta Armando Cortes-Rodrigues afirma que “em 1963, percorreram a nossa Ilha 41 Ranchos com 2137 Romeiros e nesta Quaresma de 1965, 43 Ranchos com 2217 Romeiros!” 2
Em seguida, traça o perfil dos caminhantes: “Não é gente faminta, andrajosa, miserável, revoltada na sua pobreza contra a secura dos ricos essa que aí vai: é gente sadia, que conta consigo, que deixa o amparo do trabalho de cada semana para pedir por todos: Pela Pátria, pela terra onde nasceram, pelos que trazem no coração, pelos que nos esperam na outra Vida e por aqueles que nem sequer sabem rezar... (…) São todos irmãos e é assim que se tratam uns aos outros.(...)Não há distinção alguma: quem vê um vê todos! E todos são irreconhecíveis”.
Noutra crónica do mesmo volume, intitulada “Romeiros da Quaresma”, Cortes-Rodrigues narra a estória do Tio João Sem Terra, septuagenário “magro, emperrado das pernas, queixoso de reumatismo, custosa que lhe vai a vida com um ou dois dias por semana em que lhe apareça trabalho para ganhar o sustento da Tia Sabina” e de três netos. Mal começaram os ensaios para a Romaria, Tio João foi o primeiro a chegar. E apesar da insistência da família, invocando os conselhos do médico para que não ousasse integrar o grupo, no dia da partida, no Sábado, ainda de madrugada decidiu partir “ainda que seja com uma dentada de pão e meia pataca de açúcar, não fico em casa e ponho-me a caminho”.(pg 225)
São estas convicções que ainda hoje conservam os que integram os grupos de Romeiros.
A Romaria pelas casas de Nossa Senhora, tem meio milénio celebrado o ano passado.
Foi no decurso das erupções de 1522 e 1563 ocorridas em Vila Franca do Campo.
Nesses tempos “é já notória a importância do culto de N.ª Sr.ª do Rosário, antes, pois da acentuação do mesmo, difundida pela publicação dos decretos tridentinos como lei do reino, em 1564” - afirma Susana Goulart Costa 3. Na origem desta devoção, acrescenta a historiadora: “é provável que tenha sido influência de pregadores dominicanos que, desde cedo, fomentaram nos insulares o especial apreço por esta devoção” a Nossa Senhora do Rosário “a principal advogada do povo de Vila Franca do Campo, no terramoto de 1522.”(pg 154-155).
No livro de Carlos Vieira, recentemente publicado para assinalar os 500 anos de História das Romarias 4, o autor e mestre de romeiros cita um documento referindo que, no início, participavam nas romarias, a maioria das quais se realizavam durante o verão, pessoas do meio rural: homens, mulheres e até crianças.
Mais tarde, em 1707, a hierarquia proibiu as diversões durante os trajetos e em 1743 decidiu a proibição definitiva dessas manifestações da religiosidade popular. Essa decisão, porém, como a anterior, deverá ter sido desrespeitada, pelo que, no século seguinte, e por alegados desacatos provocados pelos participantes nas romarias, “A prática dos Romeiros de São Miguel foi proibida em 1835 pelo Prefeito da Província Oriental dos Açores”(Vieira:2022,21-22).
Entre 1851 e 1863, o Governador Civil de então proibiu a passagem dos Romeiros por Ponta Delgada.
Já no tempo da república, como atrás referimos, as romarias ficaram impedidas de circular na cidade e sujeitas a autorização prévia mas a maioria dos pedidos não foi atendido. 5
Todos estes contratempos, não fizeram demover a fé dos crentes. Vários regulamentos foram, entretanto, elaborados, tendentes à dignificação daquela manifestação religiosa.
Segundo testemunhos por mim recolhidos nos anos 80, houve uma grande participação de “irmãos” durante as guerras coloniais, devido ao pagamento de promessas de soldados e de familiares.
Aos poucos, a hierarquia foi dando conta da importância das Romarias na Piedade popular. Vários regulamentos e retiros de formação para responsáveis foram promovidos, até que se criou a Associação do Movimento dos Romeiros de São Miguel, cuja representação esteve no Campo de São Francisco, por ocasião da visita do Papa S.João Paulo II em 1991.
Presentemente, as Romarias Quaresmais masculinas e femininas ocorrem também nas Ilhas Terceira, Graciosa e São Jorge e na Diáspora da América do Norte. As das senhoras, em Ponta Delgada, têm uma apreciável participação.
É tudo sinal de que a matriz religiosa perdura nas convicções de milhares de açorianos e se manifesta em caminhadas semelhantes às de outros povos e outras nações com a mesma ou outras convicções religiosas.

1 https://escritemdia.blogspot.com/2015/02/romeiros-de-sao-miguel.html
2 Cortes-Rodrigues, Armando, VOZ DO LONGE, II VOL. Ponta Delgada, 1974, pg 227
3 COSTA, Susana Goulart, DEVOÇÃO E DEVOTOS: O CASO DA ILHA DE SÃO MIGUEL NO DECURSO DO POVOAMENTO INSULAR-Séculos XV-XVI, in Actas do Colóquio Internacional PIEDADE POPULAR, CHCHI da FCSH da UNL, Terramar, 1999
4 VIEIRA, Carlos, ROMEIROS DE SÃO MIGUEL, 500 anos de História, edição Câmara Municipal de Vila Franca do Campo, 2022
5 Http://www.tradicoes-acorianas.com/romeiros-de-sao-miguel.

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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