Diário dos Açores

A carta desaparecida ou uma lembrança reencontrada

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De Natália Correia

A voz dos mortos está na escrita dos vivos que os recordam e reabilitam do esquecimento, quer as pessoas mais vulgares, recordadas pelos que as amaram, quer aquelas que deixaram alguma obra significativa, enriquecendo a humanidade, os  artistas, e esses poetas e escritores, que com as suas palavras nos contam a alegria e o âmago da vida, e é nessa mensagem a sua  perpetuidade, porque nos tocaram com a sua sensibilidade, abrindo-nos outros horizontes.
Se desaparecem – sempre ficam… Enquanto a memória dos gratos as recordarem.
Será este ano o centenário do seu nascimento, que acontecerá a 13 de Setembro. Entretanto, já começaram a surgir pelo país e na terra que lhe serviu de berço, as comemorações e preito à sua figura e à sua obra.
É certo que partiu cedo de mais, quando muito havia de esperar da sua pena. Por um lado, teve sorte, porque o tempo que lhe adveio - e este nosso tempo, é de incerteza, de guerra inglória, de dor, de luta fraticida, de intolerância, ganância, de desdém pelo outro. A humanidade nada aprendeu com o descalabro das guerras anteriores. O homem continua na sua forma infantil e primitiva guerreando-se sobre um palmo de terra onde deixou de haver vitoriosos. E ela teve vislumbres e premonições do que hoje acontece.
Com ela sempre tive uma relação de cordialidade. De respeito, nunca ultrapassando qualquer linha, que muitas vezes, as amizades se julgam no direito de ultrapassar. Éramos cerimoniosos nos nossos afectos, daí a duração que nos permitiu ser amigos até ao dia que nos deixou.
Daí, dessa convivência amistosa, ter sido ela a escrever o pórtico para o meu primeiro livro de poemas NUNCA MAIS E FOI SEMPRE. Um livro de estreia, e que a sua publicação se deveu ao entusiasmo e incentivo da poeta para comigo e pela obra estreada nos idos anos do século passado, mais precisamente em 1987.
Com o centenário à porta, andei à procura da carta que me enviara de Lisboa, pois que havia estado misteriosamente desaparecida. Por vezes, onde o mais guardado está, mais escondido fica, mais difícil a lembrança onde se encontra, e foi o que aconteceu…
Finalmente, depois de muita busca, entre papeis há muito que não eram remexidos, lá se encontrava a missiva, escrita à máquina e assinada por ela, pois era esse o seu hábito de dactilografar muitos dos seus escritos.
Recordo que Ângela Almeida, numa das suas idas a casa de Natália, tentando querer ajudá-la, prestou-se a dactilografar um texto, mas tal era a inaptidão da Ângela, que lhe foi retirada a máquina de escrever das mãos, tendo a poeta assumido a missão com destreza…
O poeta Tolentino de Mendonça dizia que ‘’a carta tem um distanciamento (espacial, temporal, reflexivo, emocional…) que os suportes digitais eliminaram. E permite uma forma de intimidade e memória que esses meios não alcançaram (ou ainda não alcançaram). Ainda temos muito que aprender com as cartas. Hoje comunicamos mais, mas corremos o risco de não comunicar melhor’’.
E mais nos diz: ‘’Na verdade. Uma carta não se resume à mensagem escrita. E isso é também a sua riqueza. Tudo nela é mensagem’’.
Pois a carta que me enviou Natália Correia, versava assim:


    
                    Lisboa, 23 de Dezembro de 1987

Querido amigo

Recebo finalmente os seus poemas há muito prometidos. Em boa hora de reforçar a identidade de uma poesia da insularidade chegam-me eles invadidos por esse mar que lhe bate nos pulsos e lhe desliza pelos dedos ‘’como peixes azuis afogados em guelras de soluços’’. Poesia de um ser naufragado no barco imóvel que é a ilha, a comer as trevas da sua solidão, eis a sensação que me transmitem o seus versos. Um registo de coisas açorianíssimas: o avô pescador, quase feito de sal a falar-lhe de sereias e de areais, ascendencia (sic) que o predestina a ser, na poesia, um ‘’pescador de palavras’’… O pranto das mães dos homens que emigram como andorinhas em busca do sul…
E, no mais, um ansia (sic) paralitica de vida encalhada no insulamento.
Singularidades da configuração cultural açoriana que, no ofício do seu dizer poético, ganha um novo e rico elemento para a antologia açórica.
Receba as felicitações amigas da

Natália Correia


Sobre estas linhas já se passaram 36 anos… A folha e os caracteres continuam com a mesma cor, nada foi alterado… Entretanto, muito mudou no mundo, mudei eu, mudaram todos aqueles que conheço ou conheci, apenas as palavras ficaram a bailar na folha do papel que foi ressuscitado do esquecimento e perduram gravadas no interior de um livro, o qual folheio de quando em quando, para me lembrar do rosto que as escreveu.

Victor de Lima Meireles *

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