Diário dos Açores

O Mistério das Grotas

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Opinião

Açorianos de diferentes ilhas contam, nas redes sociais, da chegada dos primeiros cagarros. Acontecimento luminoso quetraz por aqui a notícia da chegada do bom tempo. Mas, e ouço a fúria do vento a embater neste telhado do Corpo Santo, os humores meteorológicos ainda oscilam com inclemente violência. 
Cruzo-me com uma notícia na página RTP Açores: “A chuva forte, que caiu ao início da tarde na ilha do Faial, provocou enxurradas e inundações em algumas freguesias”. A seguir vem a especificação de um lugar afectado por um destes temporais definidores de um arquipélago fustigado e bravo: “Na Ribeirinha, uma grota transbordou e colocou em risco várias habitações”.
A maior parte dos continentais ficará a pensar: o que significa grota? Adivinho a pergunta porque dirijo uma revista chamada Grotta – sim com dois t’s, apelando a uma origem italiana – e são várias as pessoas não açorianas que me perguntam o que significa. Entre as imaginativas gentes da cultura, há quem pense que é uma forma de dizer Granta, nome de revista literária inglesa, com sotaque de São Miguel. É deixar estar a dúvida porque tem graça.
Devo dizer que nem sempre é fácil explicar. Porque é um território mais para ver do que para descrever. Nos termos de J.M. Soares de Barcelos, grota é um “leito de ribeira periódica”. Acrescenta: “No Corvo também se chama ‘valada’”.O dicionário do autor traz, igualmente, as palavras “grotão” e “grotinha”. Para o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, na parte dedicada ao regionalismo açoriano, grota é um leito de ribeira que, periodicamente, fica completamente seco. O que é isso na paisagem? Venham ver e percebem.
Continuo a achar que a melhor definição é a que o vulcanólogo Victor-Hugo Forjaz dá numa das páginas iniciais da dita revista Grotta. Concilia, com talento, ciência e poesia.  Começa assim, aludindo às designações encontradas pelos povoadores destas ilhas: “Quando uma ribeira seguia terra dentro, estreitava-se. E após certa altitude era um rego longo, fundo ou muito fundo, abrupto, tenebroso — alguém as apelidou de grota, o mesmo que cripta, termo italiano”.  Todo o rego escavado pela água, longo e perigoso de saltar, lembra, passou a chamar-se grota. Ou grotta.  Victor Hugo, que nasceu na Horta em 1941, alude aos perigos das grotas aquando das zangas do tempo: “É a fonte, o início, o começo de algo líquido mas intempestivo — que tudo arrasta vertentes abaixo. Desagua em ribeira-mãe ou vai até ao próprio mar”.
Também lá mora o lado sombrio das grotas – e digo que para mim todas as grotas trazem um mistério e um sentimento de respeito. No início da adolescência perdi-me, com um grupo de amigos, numa dessas entranhas das ilhas. “Há centenas de grotas. Todas de atravessar perigoso mas extasiante. Mas todas são o iniciar de rituais da água, límpida ou colorida, frias a geladas, vulcão abaixo”. Remata com uma imagem que não se esquece: “São como que as veias superficiais e tortuosas que oxigenam a nossa paisagem”.
Na definição, o vulcanólogo elenca os nomes de algumas grotas. A Grota do Medo. A Grota das Mulheres. A Grota das Cabras. A Grota do Despe-te-Que Suas. A Grota Funda. A Grota do Cu-de-Judas. Ao reler o nome desta última, lembrei-me de, em 2021, ler que, nesse ano, a localidade Cu de Judas, situada na micaelense freguesia da Água Retorta, ganhou código postal. Uma petição, com milhares de assinaturas, concretizou o objectivo. Na altura ainda não havia habitantes no pedaço. Que cheguem, sim. Para que venham também diálogos como este. “Onde é que moras?” “Moro no Cu de Judas”. “Onde é que moras mesmo?”

Nuno Costa Santos

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