Diário dos Açores

A Escrava Açoriana, de Pedro Almeida Maia

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A aposentação, para muita gente, significa terminar a sua atividade profissional e, enquanto espera pela morte, queixar-sedas maleitas que já tem e das que vão aparecendo. Triste vida! Do meu ponto de vista, para o seu próprio bem e daqueles que o rodeiam, o aposentado deve continuar a vida procurando ocupar o seu tempo com alguma coisa útil para si e para os outros. No meu caso, a aposentação foi uma bênção porquanto, para além de me possibilitar estar disponível para os meus filhos e netos, permite-me tempo para ler livros que vão saindo e me interessam. Quando se é professor de Filosofia, como era o meu caso, e se tem a regência de Unidades Curriculares, como agora se diz, nem todo o tempo do mundo permite acompanhar o que se vai publicando na respetiva área de especialidade. Para se ter uma ideia do volume de publicações que, anualmente, vêm a lume em Filosofia, basta dizer que, quando comecei a lecionar, consultava com alguma frequência, na Biblioteca da Faculdade, o Répertoire Bibliographique de Philosophie, publicado pela Universidade Católica de Lovaina, que era, e é ainda hoje, praticamente exaustivo na recolha de bibliografia filosófica a nível mundial. Os volumes lá estavam seguidinhos numa estante, um para cada ano; era uma sucessão de “tijolos”, cada um com, pelo menos, seis centímetros de espessura. Olhando para aquela estante, qualquer um ficava logo com a consciência clara das suas limitações quanto à bibliografia que dominava, por mais vasta que fosse, e que devia aproveitar todo o tempo para se concentrar na bibliografia da sua especialidade.
Enquanto lecionei, li pouquíssima ficção. O mais que fazia era, quando me sentia cansado e para mudar de ares, ler e reler alguns clássicos da nossa literatura, por exemplo, Os Maias e A Cidade e as Serras, do Eça, e Mau Tempo no Canal, de Nemésio. Quando saiu Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo (1988), levado pelo título li-o a correr; passados estes anos todos, tenho-o em cima da secretária para o reler. (Adoro reler livros de que gostei; é uma leitura mais lenta, mais saboreada, mais pensada, mais madura).Logo que deixei de lecionar, tenho tentado recuperar o tempo perdido. Como sei que não se pode ler tudo, vou procurando ajuda na seleção do que vai saindo, recorrendo a revistas e a amigos; entre estes ocupa lugar de relevo o Onésimo Teotónio Almeida.
Este ano, como costumo fazer desde há muito (infelizmente a pandemia roubou-nos dois encontros), para lhe dar um abraço e pôr um pouco a conversa em dia, fui às Correntes de Escrita, à Póvoa de Varzim. Como é habitual, fomos juntos ver os livros que estavam à venda e ele recomendou-me A Escrava Açoriana, de Pedro Almeida Maia [Lisboa: Cultura Editora, 2022]. Comprei.
Regressado a casa, comecei a namorar o livro, a ver se seria de começar a lê-lo imediatamente, a fazer contas se seria melhor acabar a leitura de um dos que tinha entre mãos, porque costumo ler vários livros em simultâneo; normalmente um de Teologia ou sobre religião (a questão do sentido da vida é uma das minhas preocupações constantes); outro de ficção (a ficção é, como dizia Paul Ricoeur, grande filósofo francês, uma espécie de laboratório a que os escritores recorrem para estudar a sociedade e fazer experiências) e um de filosofia ou história. Resolvi começar a ler imediatamente A Escrava Açoriana e só parei no fim.
Não conhecia o autor. Sobre o livro, tinha visto uma referência numa revista, creio. No título, tinha achado estranho o termo “escrava”, estranhamento que me tinha despertado curiosidade. Mas não imaginava minimamente o que ia encontrar lá dentro.
A Escrava Açoriana é, antes de mais, uma estória muito bem contada. Aprecio mais os romances que são estórias bem contadas, com princípio, meio e fim e que, ao chegar à última página, sou capaz de recordar o princípio e rever rapidamente o enredo, do que aqueles que mais parecem um tratado de antropologia filosófica pendurado numa narrativa romanesca.
O autor diz nos “Agradecimentos”que o livro “[n]ão pretende ser o relato de uma história verídica, ainda que o pudesse ser. Rosário [a protagonista] incorpora inúmeras narrativas autênticas daquele tempo, que se podem encontrar em arquivos históricos, documentários e artigos. A escravatura branca açoriana foi uma dura realidade e ainda persiste na memória coletiva”. Como é evidente, só li esta passagem quando cheguei à página 221, onde começam os agradecimentos, mas não posso deixar de a transcrever nesta crónica porque, para além da escrita que tem uma garra e uma qualidade literária notável, o texto citado aponta para uma das razões pelas quais o livro me interessou muitíssimo: conhecer melhor a sociedade de uma época. Aprendi imenso sobre Ponta Delgada da segunda metade do século XIX e dos inícios de século XX; sobre a emigração açoriana clandestina para o Império, como se designava naquele tempo o Brasil; sobre o Rio de Janeiro, a sociedade esclavagista da época e a existência da escravatura branca, de que nunca tinha ouvido falar. E tudo isto na vida da heroína do romance, Rosário, o eixo de toda a trama, personagem que tem uma grandeza e uma densidade que a coloca ao nível de uma Margarida de Mau Tempo no Canal, embora de outra extração social e a viver noutra época.
Rosário é uma jovem a quem parece nada sair certo na vida; que enfrenta as situações adversas sem virar a cara à luta; passa as passas do Algarve, mas não perde o olhar irónico e a vontade de rir; sofrendo horrores, não perde a rebeldia, faceta do seu caráter. Em Ponta Delgada, em pleno cortejo da visita régia de Dom Carlos pelas ruas da cidade, no meio do povo que dá vivas ao Rei, ela diz em voz alta, de modo bem audível: “Abaixo a monarquia!” e, com a sua amiga Wanda, que, insolentemente para a época, vestia calças e fumava charuto, foge do Guarda que ouvira o grito dissonante. Na fuga, as duas entram na Câmara Municipal, sobem a correr a Torre Sineira até à cobertura e, lá em cima, sentadas no chão para não serem vistas, riem e conversam sobre trivialidades e os podres da monarquia.
Outra faceta de Rosário é a sua fé. É uma fé simples, ingénua, sem elucubrações teológicas nem visão histórica, mas que a faz rezar, usando bastante um terço que recebera como presente de uma tia, freira no Convento da Esperança, ao Santo Cristo dos Milagre e a Nossa Senhora do Rosário. Procura na oração forças para resistir às desgraças que vai vivendo; porque sente que a vida não pode deixar de ter sentido e que há que ter esperança no bem e acreditar que a justiça há de aparecer. A sua fé não é um saber; se o fosse, não seria fé. É uma sede de infinito e uma esperança.
A Escrava Açoriana é um grande romance que vale a pena ler e que, muito provavelmente, resistirá à passagem do tempo, o último e decisivo tribunal dos livros. Terminada a sua leitura, é ficar à espera do próximo livro de Pedro Almeida Maia.

José Henrique Silveira de Brito*
Braga, março de 2023

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