Diário dos Açores

O julgamento impossível: primeira parte

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NOTA: Convém esclarecer o significado etimológico do conceito de banalidade para entender como este julgamento se afastou deliberadamente do seu significado

Harent tornou-se famosa com obras, que exigiriam profunda meditação. É isso o que tentaram os seus mestres. Anna Harent apenas atrai todas as atenções intelectuais e é  bem recebidas pelas críticas. É compreensivelmente acessível com a temática da época “As origens do totalitarismo” (1951) nada mais faz que mostrar os antecedentes históricos do orgulho e do medo que se iriam transformar em  terror  e à ascensão  dos governos prepotentes  que as distopias alertavam.
O seu pensamento seguiu as pisadas dos seus mestres, bem como pensadores gregos e até medievais, revela como o público derrota o privada e a ausência da vida interior, a verdadeira Vida,
O terramoto da sua vida foi o momento em que se tornou correspondente jornalista dos E.U.A no julgado do caso. Adolfo Eichmann! Pretendeu ir além de reportar e o seu depoimento sobre este julgamento, tornou a sua obra mais retumbante, devido ao subtítulo “A banalidades do Mal” lançaram-na com estrondo na ribalta intelectual do mundo ocidental.
Foi o terramoto da sua vida! Pôs a nu toda a sua própria existência numa equívoca discussão sem fim.
Harent, dada toda a sua conturbada vida, as indecisões afetivas e frustrações carregadas de angústia, mostra a face do ódio, mascarado de uma banalidade, onde consegue esconder-se e libertar-se das suas próprias culpas. De jornalista passa a juiz de alguém com quem nega ter afinidades.
A ausência de reflexão filosófica profunda dos adolescentes dos nossos tempos torna-os muito perturbados. As doutrinas filosóficas são apenas slogans e pensamentos cativantes empurrando a reflexão para a superficialidade filosófica, em que a adesão aos nomes sonoros dos maiores filósofos se confunde com as canções onde a melodia e não a reflexão esteja presente.
O problema fulcral do cogito é decorado sem entendimento da revolução epistemológica que causou e o tornou num fugitivo do Poder. Hoje, através do embalar do berço e a suavidade como se aprende filosofia não tem nada a ver com a descoberta de um mundo desconhecido que pode ser a ruína da alma e a visão do mundo como paisagem que se colecciona como quem colecciona miniaturas ou coleções de selos.
Harent, dada toda a sua conturbada existência, as indecisões afetivas e frustrações carregadas de angústia, mostram a face do ódio mascarado de uma banalidade onde se quer esconder e libertar de culpas. A sua perspetiva tornou-a mundialmente famosa. Tudo gira à volta da figura de Eichmann que muito chocou Harent e alterou a sua imagem.

A banalidade, inclusive aquela a que a ideóloga se reporta, significa futilidade e vulgaridade. É essa vulgaridade que Harent não entendia e a rodeava. Harent, no fim da vida, considerou-se uma “teórica política”. Na verdade, não tem qualquer originalidade e o seu mimetismo é bem o da sua pesada herança que põe em cena um julgamento em que o seu papel é da maior complexidade.
É pois tudo isso que surge em Eichmann quando pensava ir encontra-se com uma personalidade sobranceira, forte e orgulhosa. Afinal tinha na frente uma pessoa vulgar, comum e simples, quase trivial, dentro de uma normalidade que muito a perturbou. Terminou por chamá-lo “palhaço” como se não encontrasse definição que o enquadrasse.  
Na ópera de Leoncavallo: Il Pagliacci - “ a máscara esconde o rosto torturado do homem real que se esconde para  divertir o público.  Ao assinar toda a documentação burocrática quem é Eichmann? Coloca-se em causa o livre arbítrio. Cada um veste a túnica que esconde o homem para ser palhaço social das multidões.
Mais aterrador e recente a obra “A Laranja Mecânica” de Burgess, levada ao cinema pelo espantoso realizador Stanley Kubrick, coloca o espetador diante da força do ambiente, neste caso de ultra violência que os adolescentes praticam. Alex é o personagem que aceita submeter-se a experiências designadas por “Ludovico” de profundo condicionamento. O resultado é uma completa modificação da personalidade. A mensagem da obra é quanto pode o condicionamento transformar qualquer pessoa e odiar o que amava como amar o que odiava. O que o filme não revela, mas a ciência nos diz, é que há limites para um condicionamento profundo. As vias nervosas cerebrais possuem limites de alteração condicionais. O final de múltiplos condicionamentos é a perda do sentimento da realidade e uma personalidade que não tem qualquer consciência nem do bem nem do mal.
Interessa conhecer estas obras para observar alguém incapaz de julgar. Também temos de ter em conta que as múltiplas situações vividas lhe retiraram o livre arbítrio e ela está ao lado de Eichmann não como alguém que procurar provar alguma coisa, como justiça, condenação ou justificação mas limitada pelas suas múltiplas vivências e modificações de comportamento que torna essa pessoa, Anna Harent alguém sem possibilidades de possuir livre arbítrio, mas sim um “palhaço” ao lado de todos os que viveram ao lado do nazismo, como nazis. Huxley, numa das suas obras menos lidas, coloca uma inglesa no meio da multidão impaciente que aguarda que Hitler apareça e discurse. Repara então como a multidão, com todo o tempo de espera e depois da meia noite, começa a ter já naturalmente um cansaço e uma emotividade crescente. Quando Hitler aparece, com todo o seu aparato, a multidão já está perfeitamente preparada para aplaudir o que Hitler disser. As palavras não têm qualquer dinamismo ou um carisma forte, mas os aplausos são imensos. A tática da encenação originou a adesão de todos. Apenas a inglesa, que tentou sempre não ser contagiada pelo ambiente, ouviu um discurso frágil, sem conteúdo, mas que levava ao rubro o inconsciente coletivo dessas massas.
Eichmmann veste a personagem de “Palhaço” da ópera de Leoncavallo e o excelente ator que desempenha o delinquente de A Laranja mecânica  submetido a sucessivos condicionamentos transforma-se por completo.   O desprezo total deHarent, não abarcava o entendimento  de quanto o riso do palhaço tem de trágico quando esconde na máscara risonha  que leva ao riso dos espectadores ludibriados, mesmo que a pessoa se sinta desesperado. Harent afirma veementemente que não quer perdoar mas entender a sua ação. De certo modo, ilibaria, todo o partido nazi e os povos em geral que, ao longo dos caprichosos caminhos da História  foram arrastados para totalitarismos.
Nessa terrível época, sem muitos protestos e franca adesão, o povo alemão seguiu o nazismo. Ao falar de uma pessoa ignoramos os milhões de seguidores e tantos povos, através dos caminhos da História, que viveram ou vivem totalitarismos e partilhasideológicas. Desconsidera-se também os reflexos condicionados do inconsciente coletivo das multidões e a força invencível da burocracia que despersonaliza e racionaliza a ação não só deste prisioneiro como de todo o povo alemão assim como outros povos.

Lucia Simas *

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