Diário dos Açores

Insularidade elétrica

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Quando pudermos distribuir garrafas de eletricidade pelas diferentes ilhas dos Açores, em função das necessidades de consumo, poder-se-á discutir amplamente a liberalização do mercado de eletricidade nos Açores. Se substituirmos “garrafas” por “baterias móveis de muito elevada capacidade”, talvez se entenda melhor o futuro deste negócio a que me estou a referir e que implica transporte entre ilhas. Até lá há um enorme caminho a percorrer. Do mesmo modo, poderemos, em nome da eficiência energética e da baixa de preços, defender uma rede elétrica regional, una, benigna e consagrada, que ligue todas as ilhas. Entre a possibilidade técnica, o pragmatismo e a capacidade de fazer crescer o dinheiro, estão muitas léguas de distância ou muitas milhas náuticas. Perante isso e na atualidade, temos de viver com nove micro-redes elétricas isoladas. Já tivemos mais no passado, quando a produção e distribuição de eletricidade se fazia concelho a concelho e a maioria das casas não tinha iluminação elétrica e as ruas das freguesias ficavam sem uma única vela acesa, mesmo quando, já havia no mundo, lâmpadas de 20 velas.
Poderíamos advogar que, se há outros que adotaram determinadas soluções técnicas que nós também o poderemos fazer. A minha primeira impressão é que não, para a maioria dos casos, pelo menos no estádio em que nos encontramos.
Por exemplo, o cabo submarino HVDC de 1.400 MW que liga a Noruega à Alemanha é o cabo mais longo do mundo, com 720 km de comprimento, cujo investimento, só em estações inversoras à saída e à chegada, foi de 900 milhões. Falta o preço do cabo que é muito maior do que o que acabo de referir. Imaginemos que isso se aplicaria aos Açores. A distância entre Santa Maria e Corvo, é de 630 km, mas se o cabo der voltinhas pelas várias ilhas, certamente que ultrapassávamos os ditos 720 km da ligação referida anteriormente. Entraríamos no Guiness por termos o cabo mais longo do mundo. Acresce a isso que a potência total instalada nos Açores é de 226 MW de potência térmica e de 64 MW de potência renovável, o que totaliza 290 MW de potência instalada em todo o arquipélago, representando cerca de 21% da potência máxima que poderia ser emitida num cabo semelhante ao que liga os dois países europeus. Não daria para reduzirmos a seção do cabo nos Açores, para poupar uns trocos, porque, quanto menor for a secção, maior será a resistência elétrica e por consequência, maiores as perdas. Mesmo assim, interessava saber o que é que restava do consumo de cada ilha para poder transitar nesses cabos. Conclui-se que se restasse alguma coisa seria em São Miguel e Terceira. Ora, se toda a potência da EDA nos Açores estivesse instalada em São Miguel onde existe mais de 50% do consumo, 21% do comprimento do cabo da Noruega-Alemanha, não daria para ligar São Miguel à Terceira (segunda ilha com maior consumo). Acresce a isso que cerca de28,6MW de potência renovável nos Açores é eólica, que só produz quando há vento e cerca 0,7 MW é de fotovoltaica que só produz durante o dia, o que significa que só havendo excesso avultado de renováveis é que se poderia justificar o transporte de energia de uma ilha para outra. A ilha com mais renováveis nos Açores é a Graciosa, que neste momento está com 73,3% de produção renovável (até março de 2023) e não tem capacidade de exportar renovável, pois se o fizesse, só aumentaria os custos de produção (porque há perdas pelo caminho e o investimento no cabo seria brutal). A segunda ilha com maior produção renovável é as Flores com 67,9% de renováveis (até março de 2023) e nem sequer tem capacidade neste momento de fornecer energia ao Corvo, apesar do consumo nessa última ilha ser reduzido (0,2% do consumo regional).
Falemos então das ilhas que tem algumas perdas de renováveis: Terceira e São Miguel. Quanto perdem e quando perdem? Numa análise rápida, avaliar-se-ia, na melhor das hipóteses, uma perda de 2%(que não é perda, mas sim, não produção) que ocorre no período do vazio, altura em que a indústria não trabalha e as pessoas estão a dormir. Como o consumo dessas duas ilhas representam 79,2% do consumo do arquipélago, teríamos um trânsito de cerca de 1,58% de energia dos Açores entre as duas ilhas, o que correspondia a um comprimento equivalente a 2,72 km do cabo Alemanha-Noruega se fizermos contas em termos de potência. Tal extensão não dá para ligara Central do Belo Jardim à Base das Lajes, e se fosse conseguida, o custo rondaria umas boas dezenas de milhares de euros. O custo de ligar todas as ilhas seria maior do que o investimento feito na ligação europeia aqui mencionada.
Os Açores não são nem a Alemanha nem a Noruega e um aerogerador tanto funciona no Corvo como em São Miguel. Se tivéssemos excesso de renováveis numa das ilhas, capaz de abastecer outra, talvez aí fosse possível equacionar transporte de energia entre elas, desde que comprássemos um submarino para andar a fazer manutenções e garantir a segurança do abastecimento. Centralizar a produção numa só ilha, ou em duas ou três ilhas tem neste momento custos brutais, o que significa que, técnica e economicamente, nada disso é por enquanto viável.
Porque não passar então para a liberalização do mercado de eletricidade em cada ilha?
Liberalizar nas ilhas o mercado de eletricidade é como liberalizar o seu mercado da água. Poderíamos ter diferentes produtores ou concessionários de água, mas a distribuição equivale-se a usar as canalizações que já existem, onde num mês se compra água a um fornecedor e no outro se decide mudar para outro fornecedor. Não vejo como isso é possível nas nossas ilhas. Juntar as redes de abastecimento de água de dois concelhos numa ilha já é deveras difícil, quanto mais não seria, criar concorrência entre fornecedores de água.  
A eletricidade corresponde a um fluxo, como a água, que se pode gastar ou não. Quando precisamos dela, está lá, até um determinado volume, mas com a eletricidade renovável é diferente: pode-se ter um pouco mais, mas se não a gastamos, a sua produção não interessa para nada. Para se garantir esse fluxo, adaptado às necessidades, teria de haver vários produtores que o proporcionassem de  forma sistemática num abastecimento das necessidades que são variáveis. Com “ventoinhas” não vamos lá, pois o vento não é constante. Com água, era preciso que chovesse constantemente e em abundância de inverno e verão e teríamos mais ou menos 15% da eletricidade que necessitamos. Com sol, só teríamos eletricidade durante o dia a piscar de segundo a segundo. O que seria então um mercado liberalizado e concorrencial de energia elétrica nos Açores? Outra EDA por ilha que competisse com a EDA regulada que existe? Por exemplo, uma EDGP (Eletricidade da Graciosa Privada) teria de investir em grupos térmicos capazes de abastecer toda a ilha quando o vento faltasse ou fosse reduzido. De dia, sem vento, restava-lhe um pouco de sol, cuja oscilação da produção e consumo, teria de ser compensada com motores térmicos. E quem distribuiria essa eletricidade? Havendo concorrentes na produção, a distribuição teria de ser concessionada a outra entidade que fazia apenas a gestão da rede. Ficaríamos então com pelo menos três empresas na Graciosa: a EDGP (Eletricidade da Graciosa Privada), a EDA-G (Eletricidade dos Açores-Graciosa) que concorreria com a primeira e a EDGD (Eletricidade da Graciosa Distribuição). Poderíamos multiplicar isso por 9, e teríamos no mínimo 27 empresas nos Açores para garantir um serviço contínuo de eletricidade às populações. Não vejo como isso pode ser eficiente, dada a nossa dimensão. Não vejo porque razão se julga que a central térmica da EDA na Graciosa tem preços mais elevados do que outra central térmica privada com a mesma potência e na mesma ilha. O caso da Graciosa é interessante, porque os tais 73,3% de eletricidade renovável da ilha são privados. Não deveria haver outro privado ou público de renováveis a concorrer com a Graciólica? Se sim, na Graciosa, para garantir a concorrência precisaríamos de cinco empresas: Duas de renováveis que competiam entre si, duas térmicas em competição e uma que fazia a distribuição da produção.
A produção privada nos Açores não é proibida, mas é condicionada às características do consumo de cada ilha e à qualidade de energia de cada centro produtor: contínuo em tensão e frequência ou intermitente. Isso resolvia-se com um cabo de ligação entre ilhas? Mesmo que se ligassem por cabo várias ilhas a questão da qualidade de determinados produtores continuava a ser uma condicionante e nada impede que um privado invista num cabo de ligação entre ilhas para garantir que terá poucas perdas de produção intermitente, mas terá de perceber que lidar com duas intermitências, na ilha de emissão e na ilha de consumo, não é um problema fácil. Seria muito mais fácil e vantajoso investir na estabilização da sua energia intermitente, no local da sua produção enquanto essa ilha não tiver 100% de produção de eletricidade renovável.
Tendo em conta a nossa especificidade insular e o princípio da produção descentralizada, que é aquela que provem de regimes de produção realizados próximos dos locais de consumo, por diminuírem a emissão de gases com efeitos de estufa e minimizarem as perdas energéticas na distribuição, princípio subjacente ao autoconsumo, diria que é por essa via que se estão a dar passos no sentido da sustentabilidade.
Quando a produção de energia e sua distribuição é regulada, como é o caso da EDA e da EDM (Eletricidade da Madeira), os “valores da convergência tarifária das Regiões Autónomas são incluídos na Tarifa de Uso Global do Sistema que é aplicada pelos distribuidores vinculados aos fornecimentos a clientes do comercializador de último recurso e às entregas a clientes no mercado liberalizado”. Ora, a regulação económica do mercado de energia elétrica nos Açores estabelece que “A estrutura dos preços das tarifas de Venda a Clientes Finais da RAA em MT(Média tensão), BTE (Baixa Tensão Especial) e BTN (Baixa Tensão Normal)  deve resultar da estrutura dos preços de venda a clientes finais de Portugal Continental, aplicáveis aos mesmos tipos de fornecimentos, determinados tendo em conta: (i) os resultados da monitorização dos preços de eletricidade praticados no mercado, (ii) as variações das tarifas de Acesso às Redes e (iii) os preços de energia.”. Assim, pergunta-se se a liberalização de um mercado regional, ilha a ilha, traria melhores preços do que os do território continental português com mercado liberalizado, quando a referência da regulação é o próprio mercado liberalizado português?

Félix Rodrigues *

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