Diário dos Açores

A maçã

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As sextas-feiras costumam ser boas.
Mas esta manhã, quando me dirigia ao supermercado, não começou bem: caiu-me uma maçã na cabeça.
«Ah, corisco!»
Olhei para cima e vi um corvo no fio de electricidade.
Crocitou descaradamente. Parecia estar gozando comigo. Ameacei-o com o punho fechado mas não fez diferença nenhuma.
Tomei um tylenol quando cheguei a casa. Corisco corvo. Ia dando cabo da minha cabeça. Ainda vai funcionando relativamente bem, embora já com os estragos da idade e cabelos brancos como nas fotografias dos antigos.
Não são muitas, confesso com pena. Naquele tempo o fotógrafo só aparecia na freguesia uma vez por ano.
Nunca o vi bem-disposto. Vinha com a barba de não sei quantos dias e os olhos  inchados.
Do alto da rua, era como se viesse do céu: enorme, segurando um guarda-chuva preto e montado num burro velho.
O animal era mais vagaroso que uma pedra dos caminhos. Tinha pena do pobrinho, coitado, com aquela besta malcriada a fazer-lhe peso nas costas. Ainda por cima castigava-lhe os flancos com as botas lamacentas e azedas para que andasse mais depressa.
Irritada com a história do corvo, meti no lixo as maçãs que tinha na cozinha. Por aí se pode ver o fogo que me abrasava por dentro.
Quando a minha colega apareceu para irmos almoçar ao clube português, quase recusei. Mas lá fomos.
A sala estava cheia que misericórdia. Não era costume.
Mal nos sentámos à mesa, redonda e muito larga, um sujeito muito sério subiu ao palco. Aproximou-se do microfone e, solene,  alertou-nos para o facto de que estavam ali duas pessoas muito importantes.
Logo de seguida apareceram dois sujeitos de fato e gravata. Toda a gente se levantou para os aplaudir. Até as senhoras que equilibravam as terrinas da sopa começaram a mover-se com passos de veludo.
Quando se aproximaram da nossa mesa, o cheiro das couves fez-me esquecer o episódio desta manhã. Admito até que não prestei atenção àquilo que os senhores disseram.
Consolei-me com aquele caldo verde.
Gosto destes almoços e jantares da comunidade. É bom comer o que é nosso. Estar entre aqueles que falam a nossa língua. O cheiro da nossa cozinha. As conversas. Os sotaques do nosso Portugal.
E logo chegou a altura da sobremesa. Levava a colher à boca e o mesmo sujeito que anunciou a presença dos senhores importantes voltou ao palco. Tocou no microfone com dois dedos ansiosos a ver se estava ligado.
«Estão-me a ouvir?»
Um espertinho da mesa do lado gracejou:
«Não estamos!»
«Hã? Não me estão a ouvir?»
O espertinho riu-se, sacudindo o colarinho da camisa de xadrez, dessas de flanela que nos ajudam a suportar o corisco inverno canadiano.
Mas fez-lhe mal a galhofa: tossiu, tossiu, cheio de nicotina. Não parava. Era meter-lhe um tubo de oxigénio pelas goelas abaixo.
Os  colegas da mesa ficaram incomodados. Um deles até lhe deu umas pancadinhas de conforto nas costas.
A senhora que estava sentada do seu lado direito, e que parecia a esposa, repreendeu-o com autoridade:
«Olha, vai tossir lá para fora. Já tens esta gente toda assustada. Devem pensar que não apanhaste as vacinas da Covid!»
«Bom, o comediante acaba de sair. Já posso falar - disse o cavalheiro do palco em tom agastado. É só um breve anúncio. A pessoa que tem um Toyota branco com a matrícula x  por favor dirija-se ao parque de estacionamento. Está a bloquear outro veículo que pretende sair.
A minha colega bateu-me no braço.
«Não é o teu carro?»
Saí com o peso do almoço a atrasar-me os passos. Nem sequer uma digestão descansada se pode ter.
Encontrei um sujeito baixote encostado ao meu carro e de braços cruzados. Tinha bigode grisalho e um boné vermelho enfiado na cabeça.
Falou-me num inglês toldado pelo tinto do almoço.
«A culpa é do governo, dar carta às mulheres! Onde é que foste comprar a carta de condução?»
«À mercearia do senhor José, na tua freguesia. Na mesma onde compraste a tua», respondi-lhe em português.
O baboso. Se calhar até leva da mulher mas ali armado em chefe de estado.
«Já vejo que és da minha ilha, mas da minha freguesia é que não. Na minha, as mulheres só saem de casa para irem à igreja.»
«Além de seres tolo, és machista. Não é melhor ires para casa cozer a bebedeira em frente da televisão? Isto é, se a tua mulher te deixar entrar em casa.»
«O quê?»
O queixo duplo tremia-lhe de raiva. Lembrou-me um pelicano e desatei a rir.
O seu ego machista caiu por terra.  
«De que te estás a rir, sua lavadeira com carta de condução? Nem sequer sabes parcar o carro!»
Pensei: esta mão que pode apertar o pescoço do estuporado corvo desta manhã até ele cantar um fado da Amália, pode também esganar este.
«Ó caganita de melro! Já alguma vez levaste com uma mala nas ventas?»
Ficou a olhar para mim com cara de asno. Deu-me repugnância. Passei por ele como quem foge de um mau-cheiro e meti-me no carro.

***

«Querida, desculpa a má-língua» disse à minha colega minutos depois quando virava para a autoestrada. Estava furiosa e não parava de insultar aquele pato anão.
Ela não respondeu.
«Também estás inchada comigo?»
Nada.
Preocupada, voltei-me. Mas no assento só estava a minha mala. Fiquei com os cabelos em pé.
Nesse momento o telemóvel tocou. Como o meu carro é novo e tem estas coisas todas modernas, foi só tocar no painel para atender.
«Eh mulhé, aconteceu alguma coisa? Chamo a polícia? Estou estranhando a demora! Já se foi tudo embora. Só cá estão uns barulhentos a jogar às cartas. Guerreiam que misericórdia e dão punhadas na mesa como se estivessem a matar moscas. Isto ainda vai dar arressaca.»
Não estava com aço para voltar atrás, mas lá tinha que ser.
«Não te preocupes, querida. Daqui a cinco minutos já estou aí.»
As sextas-feiras costumavam ser boas, pensei, guinando à direita.

Eduardo Bettencourt Pinto*


* conto inédito
www.eduardobettencourtpinto.com

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