Diário dos Açores

A visita do Noah e a Páscoa

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Da minha varanda olho a baía norte em curva abraçando a ilha, um grupo garças disputa o espaço na pequena pedra num jogo de empurra-empurra, enquanto um vento maroto bolina o mar provocando ressacas e engolindo a praia nesta segunda-feira pós Páscoa. O céu enxovalhado está igual ao meu estado de espírito, pura melancolia. Relembro os dias agitados de março até o 1º de abril que já foi o primeiro dia do ano e agora assinala a mentira. Olho este dia tão morno e falo comigo mesmo: – Ô Senhor, como a ansiedade da alegria do nada dá lugar a um banzo corrosivo? Passei dias e dias planejando a visita do Noah... Tudo tinha que estar preparado para quando o Noah chegasse. Os preparativos para a visita seguiam desde os cuidados com a varanda até a escolha das prendas e o almoço do dia 1º de abril. Sua chegada estava prevista para a madrugada do dia 23 de março, bem na data do aniversário de 350 anos de Floripa. Animava-me o som da sua vozinha no áudio do WhatsApp que ouvia sem cansar:  – onde o Noah, vai? – “vai Basil vê a Bisa”. Passei a esperançar e a contar os dias até a sua chegada, ou melhor, imaginar os muitos beijos e abraços apertados, junto do coração da Bisa. Sim, o Noah é meu bisneto, filho da neta Larissa que reside em Rotterdam, na Holanda. Tudo planejado...o almoço do dia 1º reuniria a família lá no Arantinho, no Pântano do Sul, o lugar de eleição dos manezinhos. O meu filho Murilo e a nora Lilian viriam de Lages trazendo o querido Sebastian, o netinho serrano de três anos, nosso galego de olhos verdes que ama o mar, a praia. Em dois sacos fui reunindo livrinhos de histórias para o Sebastian e o Noah: “Ostrelinha” de Luciene Coelho, “Tonico e a vaca letreira” do moçambicano Dany Wambire, “Maruxa” ilustrado lindamente pela amiga portuguesa Mafalda Milhões, a história em quadrinhos “Açores, uma viagem fantástica”, do projeto Viva Açores, entre outros clássicos da literatura infantil como Alice no País das Maravilhas (Lewis Carrol) e Gato de Botas (Charles Perrault) em novas e reduzidas edições. Saboreava a ideia de reunir Sebastian e Noah e contar algumas historinhas como a deliciosa vaquinha letrada do Dany ou a aventura da Maruxa a fazer um bolo.
Entretanto a minha programação não saiu como a sonhada... Como bem diz o velho provérbio: “O homem propõe; Deus dispõe”.
O Murilo preocupado pelo aumento considerável de casos de Dengue no litoral achou melhor não viajar com a família. A Larissa, que anunciou a chegada do segundo bisneto para outubro, necessitou de atenção médica. Assim a visita tão esperada do Noah se resumiu em ficar só um bocadinho na casa da Bisa. Nem curti direito. Foi mesmo uma “visita de médico”!
Não falei da Páscoa, dos ovos de Páscoa, do coelhinho “de pelo branquinho e olhos vermelhos”. Um dia ele vai saber que os ovos de chocolate se espalharam pelo mundo sem nunca perder o seu significado – “renascimento, esperança de vida”; também não mostrei o Judas – boneco de pano que no sábado de aleluia seria malhado,uma tradição ibérica muito comum desde o Brasil Colônia e que já perdeu a sua força. Inclusive foi retratada em 1823 por Jean-Baptiste Debret de passagem pelo Rio de Janeiro.
Ah! Eu queria sentar no chão com o Noah e juntos fazer uma cesta de Páscoa de caixa de papelão, enfeitada com babados de papel crepom, enquanto ia cantando ou contando histórias. A excitação de correr pela casa e quintal atrás da cesta que, na véspera, deixara à espera da visita do “coelhinho”. Talvez tivesse sobrado uns minutinhos para mostrar a cor púrpura em suave degradé rente a linha do horizonte e dizer ao Noah que o céu estava em festa por causa da Páscoa da ressureição de Jesus, o Filho de Deus que morreu na cruz por amor à humanidade. O espírito da Páscoa continua aqui, bem vivo.
Pensando bem, a crônica aqui lavrada levou-me a passear pela memória dos afetos, da alegria dos pequenos gestos partilhados, de reencontrar o encantamento dos domingos de Páscoa, iluminados por um amor imenso, nascido há quatro gerações.
    Só para o Noah: A casa da Bisa, será sempre o teu lugar de chegar, de ficar, de partir e de regressar.  

Lélia Pereira Nunes *

*Escritora/
Academia Catarinense de Letras

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