Diário dos Açores

Chicharros, salsa e “pimenta na língua”

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Finalmente o cabaz alimentar de 46 produtos com IVA a zero, entrou em vigor no continente e, por arrastamento também nos Açores.
Durante a discussão pública e parlamentar não se ouviu uma única palavra da governança regional, nem dos deputados eleitos.  
A comunicação social, não sei porquê, descurou o problema, não o discutindo nos espaços habituais com representantes dos produtores, consumidores, distribuidores e do próprio governo que, estranhamente, se fechou em copas como se o tema não lhe dissesse respeito.
Se isso tivesse acontecido, certamente ter-se-ia evitado que alguns produtos usuais da dieta alimentar açoriana não constassem do pacote aprovado pela Assembleia da República. Aliás, impõe-se perguntar por razão o Parlamento Regional, competente para decidir alterações à fiscalidade regional, não elencou um cabaz próprio com produtos usados pela cozinha açoriana, com preços eventualmente diferentes da duração do IVA a custo zero.
No dia em que a medida entrou em vigor, fui informado por uma empregada do comércio local que a salsa não constava da lista, o mesmo sucedendo com coentros, fava e até repolho, muito usados na nossa alimentação.
Na quarta-feira, o vendedor de peixe informou-me que o nosso chicharro miúdo e grado, um dos pratos típicos das famílias açorianas, também lá não consta. A sardinha, sim, mas de que nos serve ela se é diminuta a sua captura e, habitualmente, a comemos congelada?
Competia às autoridades regionais e aos deputados açorianos intervir nessa discussão para acautelar as nossas especificidades. Se tal tivesse acontecido no mesmo cabaz teria sido introduzidos a banha de porco, uva, figos, melancia e ananás, com certa expressão comercial e com temporã produção regional. Ganhariam os produtores, consumidores e a própria economia agrícola. Taxados em 4% de IVA, é de prever que essas culturas conheçam dificuldades de comercialização, e escoamento, face às conhecidas dificuldades económicas de uma elevada faixa da população.
Perante tudo isto, espera-se que o Governo e o Parlamento regionais refaçam a lista de produtos adequando-a às nossas especificidade, como é sua obrigação e competência.
Ao longo de quase cinquenta anos, os açorianos foram instruídos de que os seus representantes autonómicos não devem deixar a outros o que lhes compete e que muito custou a alcançar no exercício da Democracia.

2. Isto mesmo advertiu o primeiro Presidente do Governo dos Açores, em texto publicado esta semana na imprensa micaelense.
Contrariando “vozes, talvez bem intencionadas preconizando o fortalecimento do papel dos Órgãos de Soberania da República ou dos seus representantes entre nós estabelecidos, na concretização de reformas tidas por necessárias para o integral desenvolvimento das nossas Ilhas. É importante dar a tais proclamações uma firme resposta, que só pode ser: - Não!” 1
Como não entender neste alerta uma crítica aberta ao Executivo Regional que, a propósito da revisão da Lei das Finanças Regionais pretende responsabilizar mais o Governo da República pelos crescentes encargos com o Serviço Regional de Saúde?
Será que Mota Amaral pretendeu também pronunciar-se sobre a reunião, em Lisboa, do Vice-Presidente do Governo com a Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, solicitando-lhe o reforço do financiamento destinado às das respostas sociais e ao financiamento dos cuidados continuados e das creches?
Nestas matérias os discursos governamentais não são unânimes. Critica-se – e bem!- o Governo da República pelo atraso no pagamento das obras de interesse nacional efetuadas no porto  das Lajes das Flores, ou o atraso na construção de empreendimentos nos domínios da justiça, da segurança das populações e no funcionamento da Universidade dos Açores. Mas, por outro lado, reclama-se a ajuda estatal em domínios que são competência nossa e que obrigam a uma gestão mais rigorosa dos nossos recursos, como sublinhou Mota Amaral: “Não nos podemos eximir de alguma responsabilidade em escolhas erradas de investimento porventura ocorridas” 2.     
Alguns desses questionáveis investimentos envolvem gastos vultuosos e, a meu ver, injustificados. São disso exemplo, as obras anunciadas para o antigo e desativado porto de Santa Iria, em São Miguel, no montante aproximado de 5 milhões de euros, enquanto outras situações de solução urgente também na orla da costa norte não tiveram a mesma prioridade, apesar de  estarem em causa pessoas e habitações...
Não se pode subestimar os clamores das populações indefesas. Apesar de o povo anónimo não se manifestar publicamente, ele tem a noção perfeita do que é fundamental ao bem estar social coletivo e o que vai de encontro a interesses particulares e de pequenos grupos.
    
3. O uso repetido da linguagem economicista e neoliberal vai-se impondo no discurso político e até jornalístico, como se fosse a única cartilha do desenvolvimento humano.
Esta semana, o Representante da República, diplomata de carreira, afirmou em Angra a embaixadores dos países da UE acreditados em Lisboa, que “Açores são soberbo ativo para Portugal”.
A afirmação foi, de certo, bem compreendida pelos visitantes, já que a União Europeia não esconde a sua manifesta propensão para a expansão do neoliberalismo, embora com algumas medidas sociais que não conseguem dirimir o fosso entre ricos e pobres, nem disfarçam certos resquícios de colonialismo e subserviência de todo condenáveis.
Não me parece correto que o Senhor Embaixador Catarino tenha aliciado os representantes dos 27 países da UE com o “soberbo ativo para Portugal”, o mesmo é dizer para a União Europeia, como se as potencialidades dos Açores estivessem a concurso no mercado internacional.
O Arquipélago não está à venda, Senhor Embaixador, apesar do nosso atraso e dos nossos persistentes constrangimentos para alcançarmos o patamar a que os açorianos têm direito como cidadãos europeus.
Considerar como um “ativo económico” a nossa cultura, a nossa história e todo o património coletivo, é menosprezar a sociedade humanista que construímos em quinhentos anos nas nove ilhas e na diáspora. Esses valores são imateriais, não se medem nem têm flutuações no mercado bolsista e como tal não têm paralelo nas fortunas do mundo.
A nossa dignidade não se sujeita às soberanias, nem se troca pelos milhões que vêm dos cofres dos ricos países da União Europeia. Somos senhores do nosso território e sobre ele temos poderes de que não abdicamos.
A linguagem neoliberal tem, por vezes, estes inconvenientes e não é bem aceite por todos.
Se algum dos visitantes pensou poder instalar-se aqui um paraíso de magnatas ou um complexo de casinos e no mar imenso que nos envolve instalar uma polo para extração de minerais raros e caros, deve desistir desse intento.
Somos um povo modesto e trabalhador e isso não é traduzível nem em capital nem em ativo, muito menos soberbo. Faz parte do ser ilhéu e essa qualidade não se compra, nem se vende. Nasce com qualquer açoriano. Vive-se e sente-se. É uma distinção que nos orgulha.
“Ativo soberbo”, Senhor Embaixador, é uma expressão, no mínimo, infeliz, pelo que espero seja apagada do seu léxico diplomático e político.

1 in, jornal “Diário dos Açores”, 18 de abril de 2023, pg 8
2 idem

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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