Diário dos Açores

«Ídolos, nunca mais!», disse ele

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Centenário de Pedro da Silveira, XXIII

Sete meses decorridos desde que foi lançado o primeiro tomo da Prosa Reunida de Pedro da Silveira, o Instituto Açoriano de Cultura dirigido por Carlos Bessa insiste em não responder ao seu organizador (no caso, o signatário) sobre a publicação do segundo tomo, anunciado «para breve» em Setembro de 2022 pelo seu autoproclamado editor, o presidente do IAC, o mesmo que exigiu ter o original pronto para impressão em meados de Dezembro. Trata-se dum livro de mais de 600 páginas de dispersos maioritariamente sobre literatura portuguesa, que ainda com maior evidência iluminará a figura do seu autor, por tantos anos esquecido também ele. Este impasse editorial mancha sem dúvida estas comemorações centenárias e fere o resgate da obra de Pedro da Silveira a que lançámos ombros irá em breve cumprir três anos — e que continuará, a par e passo, o seu caminho das pedras também com pequenos trabalhos de divulgação e comentário como o que se segue, enquanto outros, sempre afoitos, se lançam a temas mais favoráveis no momento, por uma razão ou outra, à sua subsidiodependência visceral. Fica o merecido registo.

Como qualquer outra arqueologia literária, a de Pedro da Silveira é uma «tarefa infinita» que só a fidelidade persistente e o acaso dadivoso favorecem. Textos absolutamente desconhecidos aparecem de súbito num folhear de jornal ou revista, são apontados numa carta guardada num espólio ou constam, inesperadamente, duma nota de rodapé ou da bibliografia dum outro autor. E depois esses textos vêm esclarecer qualquer coisa ou completar o quadro geral duma biografia literária que tarde a ser construída para esclarecimento duma época histórica ou duma geração cultural. É, portanto, uma campanha de longo prazo que como tal deve ser assumida e compreendida pelos seus agentes directos e por todos, e mais extensa ainda será quanto mais nos afastarmos — seria melhor dizer: nos atrasarmos — do tempo do escritor em causa, perdendo mais e mais depoimentos vívidos e papéis frágeis. Só o esquecido é passado, uma vez mais e sempre.
Cheguei a este texto de Pedro da Silveira por uma «breve» no Diário Insular, que atribuo claramente a João Afonso, dando conta do «início da colaboração» do florentino n’O Século Ilustrado. Tal colaboração consistiu, todavia, apenas nesta página, que resulta do convite feito a escritores para «contar uma história»; por exemplo, Mário Cesariny de Vasconcellos escreveria duas semanas depois.
A curiosa «história» de Silveira reporta-se ao ambiente literário da Angra do Heroísmo da década de 1930, quando ele ali foi estudante de liceu e seminário já envolvido em primícias literárias e visitando figuras em destaque. O literato designado como Germano é, creio bem, Gervásio da Silva Lima (1878-1945), também referido por Pedro no prefácio às Ilhas Desconhecidas como pomposa figura da cidade que recusou a Vitorino Nemésio ir cumprimentar Raul Brandão, pois este lhe parecia um emigrante que voltava à sua terra sem vintém. Mas esta é também deveras uma história edificante, prevenindo-nos dos malefícios de idolatrias de qualquer espécie e pinta, ou dos graves erros de avaliação pessoal que tantas vezes, e em tantos tempos da vida, praticamos inadvertidamente. Para bom entendedor...

Vasco Rosa

Ao princípio era a mitofagia

Conheci-o quando, dos quinze para os dezasseis anos, começava a rabiscar uns versos, orvalhados de lamúria romântica e humanitarismos à Kropotkine, que o almanaque da terra, precioso jazigo de devaneios e moralidades sediças, generosamente acolhia. No pacato burgo insulano, que os vapores ronceiros sugestionavam de Europa todos os quinze dias, ele era, sem dúvida nem contesto, alguém — literato festejado, membro das Forças Vivas. Publicara alguns trinta livros; era sócio de honra de várias academias e institutos eruditos (sobretudo heráldicos e arqueológicos). Nas capas desses livros, logo abaixo do nome do grande personagem, num discreto mas bem legível corpo 8, desfilava toda a sua glória. E, apesar da ironia do Sr. Luís da Rosa — «O Germano é sócio de todas as fanfaras deste mundo e vizinhanças» —, não havia por ali quem não tomasse a coisa muito a sério. Eu talvez mais do que qualquer outro dos basbaques locais. Pelo menos de maneira mais angelical...
Bem cara me custou à alma a cegueira idólatra!
Estou agora a lembrar-me do momento em que ele, o malandro!, encontrando-me na redacção de O Distrito Autónomo, me elogiou o estro. Chamou-me «ridente promessa»; que, se continuasse, não deixaria de chegar às paragens do Parnaso. Receitou-me Junqueiro e Bilac. Mas nada de futuristas!
«Loucos, meu preclaro amigo, uns loucos! Arte nova?... Aquilo não é Arte! Ora veja, por exemplo, os versos do nosso Cabral: “O meu Charuto”. Aquilo sim! Sentimento. Brilho. Os futuristas... Loucos e mais nada!»
Concordei. Que havia de fazer eu, aprendiz de sentimental, senão concordar? E continuei a venerá-lo, a venerá-lo cada vez mais. E a escrever sonetaços, agora em alexandrinos laboriosos, suando no esforço de trepar as ladeiras do Parnaso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Até que um dia...
O grande personagem anunciara-me, displicente, a próxima publicação de um novo livro. O último, dizia. Qualquer coisa de muito transcendente, sobre a covardia de Pôncio Pilatos, com descrições da paisagem da Judeia («aguarelas sentimentais»...), rabis, camelos e muitas outras coisas.
Faltava apenas polir umas passagens. Dentro de um mês, os prelos botariam cá para fora a maravilha.
Pois bem. Aí vai. Embora ainda hoje me custe confessar que caí neste logro; que fui levado à certa; que durante dois anos aceitei como verdade incontroversa a grandeza daquele farsante de província. (Sirva-me de consolação a certeza de que não fui o único parvo. Que muitos, ainda hoje, a catorze anos da morte dele, aceitam a sua grandeza.)
Era costume juntarem-se, à tarde, no escritório do grande homem, os literatos da cidade. Também eu, apesar de verde, frequentava o conspícuo cenáculo. Naquele dia cheguei talvez mais cedo. Ele foi lá dentro. Então, lobriguei, sobre a secretária, uns manuscritos. A letra, conhecia-a, era a dele. O grande livro, pensei. E fervi de incontida curiosidade. Aproximei-me mais e...
Raios! Fiquei passado. Eram artigos, assinados com pseudónimos vários, a respeito do livro. Em cada um, ao alto da primeira folha, o nome do jornal insulano a que se destinava. E depois a procissão dos adjectivos — tudo de génio para cima!
A garganta apertou-se-me. A cabeça, parecia-me que rodava, suspensa, no ar. Seria verdade o que os meus olhos tinham visto? Ou não passava de trapaça do Eiramá? Tive pena de mim mesmo. Abalei porta fora — e nunca mais lá pus os pés.
Levei dias a matutar na coisa. Interrogava-me, angustiado. Depois, já mais calmo, reli os livros dele e não lhes encontrei a magia de outrora. E foi com verdadeiro acinte vingativo que, passada a crise, me atirei a ler uns tantos autores modernos, dos poucos que adregavam arribar àquelas paragens insulanas. Gostei — e aderi. Mas por quanto tempo aquilo me doeu. Surgia-me uma celebridade, e eu — na retranca. Ídolos, nunca mais! Do muito que então li contra os bonzos de que o burlão era na ilha o símbolo, guardei na memória algumas tiradas de respeito. Mas, mais do que isso, me impressionaram dois versos de Edmundo de Bettencourt:

    Quero pedir-vos adeus sem nenhumas ternuras,
    sem pena e repugnado, ó antropofagias obscuras!

Substituí antropofagias por mitofagias (o autor que me perdoe o abuso), e quando me sinto ameaçado por novos ídolos, recito-os como conjuro. E, duvidando sempre, até de mim mesmo se me acodem velocidades de subir ainda ao alto do Parnaso que tente escalar com os meus insonsos alexandrinos, consigo supor que estou vivo!...

Pedro da Silveira
O Século Ilustrado, Lisboa, 14 de Maio de 1955, p. 9

Vasco Rosa  *

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