Diário dos Açores

Pobreza e envelhecimento

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Opinião

1.-A noite ia alta, já passava das 21h30, quando a campainha despertou o sossego. Abro a porta com algum receio e deparo-me com um miúdo pequeno, sorriso aberto, pedindo uma esmolinha. Avancei e deparei-me com outra criança, ar circunspeto e bem trajada, tendo atrás um rapazote envergonhado. Chamei o mais velho e perguntei: “o que se passa?”, mas não obtive resposta. A verdade nua e crua veio do garoto mais novo: ”só temos massa em casa e mais nada para comer.”  
A situação deixou-me embaraçado. Procurei satisfazer aquela necessidade que não me pareceu ocasional, e pensei no (sub)mundo da miséria e da fome que circula à minha volta alimentado por uma contagiante indiferença e desinteresse de cidadãos e instituições que fecham os olhos a tantas carências. 
No final do século passado, eram recorrentes os pedidos de esmola e ajuda: famílias numerosas vivendo em zonas periféricas em condições indignas, confrontavam-se com necessidades de toda a ordem. Nos últimos anos, as condições sociais alteraram-se significativamente para melhor. 
Os índices de pobreza demonstram, porém, que o sistema económico vigente é mais lesto em favorecer os que mais têm do que em atenuar as diferenças gritantes dos que menos possuem.
Sobre esta geração recai, por isso, a responsabilidade de construir uma sociedade solidária, ou como declarou, recentemente, o Papa à revista belga Tertio1: “Devemos ter a coragem de sonhar com uma economia diferente, ao serviço de todos, de sonhar inclusive em economias que não sejam puramente liberais”.(...) E adianta: “A economia deve ser uma economia social.” 
Numa linguagem didática e catequética, Francisco explica que face à “crise terrível” que atinge  “a maioria das pessoas no mundo - a maioria – [que] não tem o suficiente para comer, não tem o suficiente para viver [porque] a riqueza está nas mãos de poucas pessoas que dirigem grandes empresas, que por vezes são propensas à exploração”, “O compromisso social da Igreja é uma reação, uma consequência do culto. A ação social da Igreja deriva do seu ser.”
Na segunda metade do século XX, foram muito importantes as ações de âmbito laboral e social levadas a cabo pelos diversos movimentos da Ação Católica, nomeadamente JOC e LOC. 
A Liga Operária Católica mantém-se ativa e organizou entre 24 e 29 de abril, em Braga, conjuntamente com o Movimento dos Trabalhadores Cristãos a 12ª Semana Temática sob o título “Que dignidade para as famílias trabalhadoras?” 
O encontro debateu os baixos salários e reformas, a falta de casas a preços acessíveis, os horários laborais longos e desencontrados, o aumento do custo de vida, o aumento da prestação da casa e das rendas e a conciliação da vida familiar com o trabalho.
Nas conclusões defendeu-se o recurso à formação, a preparação do envelhecimento, a luta por um trabalho compatível com a vida familiar, a luta por um “domingo livre” e a criação de uma rede de habitações a custos controlados.
Pode parecer que estas questões estão fora do “catecismo cristão”. 
Durante muito tempo gerou-se a ideia de que a religião visava unicamente a “salvação das almas”. Esta conceção é anti-evangélica e foi claramente contestada pelo Concílio do Vaticano II no prólogo da Constituição sobre “A Igreja no mundo atual” (Gaudium et Spes): “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.”
A clareza do texto constitui um fator de mobilização e dinamismo para ações consequentes que abranjam as camadas sociais mais débeis.
Entre elas destaca-se o crescente número de idosos.
2.-Numa Europa cada vez mais envelhecida, por fatores que carecem de ser equacionados, importa que agentes sociais e políticos encarem o problema numa perspetiva positiva, integrando as capacidades e valências dos idosos em projetos coletivos, dinâmicos que envolvam também as crianças e os jovens. 
O envelhecimento ativo que hoje entrou na agenda das instituições internacionais conta com a experiência, a sensatez e até a memória dos idosos, em ligação estreita com o dinamismo, a irreverência, o sonho dos mais novos e o envolvimento das crianças. Esta simbiose torna a sociedade mais solidária, compreensiva e integradora dos cidadãos nas várias etapas da vida.
O sistema económico vigente, infelizmente, tem desconsiderado as aptidões e valores da última etapa da vida, descartando os idosos e os avós em armazéns, lares ou museus como pessoas improdutivas, pesos que alegadamente sobrecarregam as finanças públicas pelos gastos com a saúde e dependências, e não com as magras reformas que a maioria dos idosos aufere.
Urge ter a noção de que os avós merecem tudo como pessoas. Eles são joias - tesouros da história humana e sobretudo das famílias e da sociedade. 
No dizer do Papa Francisco na citada entrevista, eles são “a memória que nos transmite o conhecimento. E colocar os jovens em contato com seus avós é semear a vida, é semear o futuro. É preciso valorizá-los. Eles não são materiais para serem jogados fora”.
Cabe a todos, nomeadamente aos responsáveis por olhar e cuidar deles, tudo fazer para lhes proporcionar um fim de vida agradável e feliz prestando-lhes apoio para conseguirem ultrapassar a solidão e o abandono a que muitos são votados.
A dificuldade de mobilidade é uma das razões que lhes impede o encontro e o convívio.
Existe legislação rodoviária que as autarquias não cumprem, mas nem por isso são penalizadas. Como também faltam voluntários para os auxiliar, solidariamente, a sair de casa ou a executar pequenas tarefas da rotina diária.
As instituições sociais e sobretudo as religiosas têm de empenhar-se em encontrar respostas compatíveis com essas necessidades. Quanto antes, porque cedo ou tarde todos atingiremos essa faixa etária sem retorno e com muitas debilidades.
Há quem afirme que ser pobre não é só ter carência de meios materiais para sobreviver. É sobretudo sentir-se excluído por falta de compreensão, de reconhecimento, de carinho e de simpatia de toda uma sociedade a quem tudo se deu de coração aberto.
Só uma mudança de mentalidades e de paradigma pode conduzir a uma economia social ativa e intergeracional!...

1 https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-02/papa-coragem-sonhar-economia-entrevista-tertio.html

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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