A «Rosa do Mundo» aditada
Diário dos Açores

A «Rosa do Mundo» aditada

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Centenário de João Afonso, V

Um dia, por certo, para justiça justa e elucidação pública, se falará de quem como e porquê travou ou bloqueou a edição, nos Açores, da obra de Pedro da Silveira desde 1986. O assunto, por desagradável que seja, é esclarecedor de uma condição cultural iludida, capaz de abandonar valores dos tempos idos, e da fragilidade dos meios editoriais da região, incapazes de prover reedições contínuas dos autores destas ilhas, enfraquecendo a consciência — e o benefício — das gerações vindouras. Uma política cultural digna do nome atende sempre a isto, independentemente do partido no poder, mas aos escritores de cada aqui e agora também compete zelar pelo património literário pretérito, de que, afinal, também eles um dia farão parte...
O caso da antologia de tradução poética Mesa de Amigos de Pedro da Silveira é bem paradigmático de situações deste tipo. Publicada pela DRAC em 1986, como primeiro título duma colecção de livros do escritor florentino, tinha o interesse adicional de dar primazia a esta outra forma de criação literária, que ele iniciara pelos anos 50, cedendo a jornais um ou outro poema de pares estrangeiros, de Rimbaud a Neruda e outros. O leque de autores traduzidos apontava e esclarecia a vastidão geográfica da sua curiosidade literária — de ilhéu ultraperiférico, poderia acrescentar-se sem favor —, um labor sem finalidade precisa ou imediata, mas bastante indicativo da sua profunda pertença a uma comunidade global e de raízes muito antigas.
A quebra do compromisso público de publicar a obra de Pedro da Silveira, em vida do escritor, não incomodou quem a decidiu nem tão-pouco beliscou quem a ela assistiu com cúmplice indiferença durante duas décadas, a que a proximidade e a ocasião dos 100 anos do nascimento (Fui ao Mar Buscar Laranjas, 2019; Edição do Centenário, 2022-23) vieram pôr cobro, parcial ou totalmente — ainda se verá! Não admira, por isso, que a única notícia na imprensa açoriana da publicação de Mesa de Amigos pela Assírio & Alvim tenha sido feita pelo fiel amigo João Dias Afonso, um bibliotecário e poeta (também ele tradutor de poesia)... de 79 anos!!
Evidente caso para se perguntar onde estariam, afinal, todos os outros...

Vasco Rosa

Mesa (re)posta de Amigos

Agora, e a partir de Lisboa, voltam a ser fornecidas ao país, desta feita pela editora Assírio & Alvim, e com o título, há anos assente, de Mesa de Amigos, as versões de Poesia que Pedro da Silveira viu (em 1986) expandidas nos Açores pela Direcção Regional dos Assuntos Culturais (assim designada ao tempo).
Retomam lugar e expansão essas traduções. Reachegam-se em Mesa (re)-posta.
O autor açoriano, ele mesmo poeta de obra feita e tão bem feita quanto apontada e reconhecida, ter-se-á dado conta, com a edição de há 16 anos, de que valeu a pena o labor das suas traduções em letra redonda floreada em tempo ido.
Terá, pela certa, sentido (e bem) o quente clima de festival que rodeou (pelo menos por estes lados), o primeiro surgimento, logo assinalado dos produtos que foram os de tradutor sem pressas pelo tempo necessário a um cúmulo de obra. Fora ele preparando para o português o que, de subida perspectiva e conteúdos poéticos, sinalizava efectiva projecção (tempo e espaço) pela Poesia expressa em várias línguas.
A indicada Assírio & Alvim, quando do passar a novo milénio, quis proporcionar ao país, por muito alentado e volumoso tomo, Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro. Se em quantidade era bastante (rondava as 2000 páginas), também em qualidade essa Rosa do Mundo correspondia ao que nitidamente se poderia percorrer, em Poesia advinda, desde épocas quase que imemoriais à actualidade, e que a leitura universal fora ganhando.
Hoje, a editora, ao desencantar Mesa de Amigos, procede a um aditamento indispensável a essa Rosa do Mundo...
Promete, e mais uma vez patentemente bem efectivada, a presença do trato da Poesia pelo poeta de A Ilha e o Mundo, o tradutor, artista que o é também na prosa (género e estilo). Está-se com o Pedro da Silveira, o mesmo que, ainda agora já o octogenário, se entrega, e compraz, a redobradas ocupações literárias e se interna nos impulsos, seus e exigentes, a jovens talentos notados pela renovação e inovação.
Mesa de Amigos está reavida e, ao ser reavida, antecede-a uma Notícia explicativa, cujo conteúdo só aparentemente... noticioso serve à história literária que muito convém. No todo e em cada componente, não se dispensa tão bem servida tábua atoalhada a pano fino. Até o livro se oferece como objecto em que a Arte (na capa) se ilumina pela reprodução de um fresco de Pompeia preparatória da inspiração do leitor, precedentemente munido de Rosa do Mundo por demais preenchida. O que nesta faltou, acha-se no conjunto selectivo de Pedro da Silveira, o tradutor.
São, em Mesa de Amigos, umas 70 composições poéticas, com origem umas de longínquos tempos e lugares (por exemplo, China no século III), as outras já próximas da actualidade e quase de agora. Entre estas ficam-se as de Espanha (incluindo Galiza e Catalunha), Itália, França, Sul da América — Nicarágua, Uruguai, Colômbia, Chile e Argentina —, e ainda Suíça e Egipto, assim como ilhas (Canárias e Sicília).
Por tanto que é: um pletórico meio mapa-múndi de magnífica «Documenta Poética» [é o título da colecção], agora reaparecida em seus favorecimentos a quem sabe ou pretende ser de real leitura. Mesa de Amigos, nas suas promessas, é mesa saudável na gastronomia poética. Documento, portanto.
Quanto ao Pedro da Silveira tradutor, não deixa ele sequer (na consciência estudiosa das dificuldades de cada versão e de todas as versões) de aludir, na sua Notícia, de que, em operando Poesia a partir de outros, fez ainda mais obra de traditore que de traduttore. Questão é de honrado escrúpulo, porque o resultado das versões fala pelos autores dos originais e, por ele, a traduzir, também fala eloquentemente.1 
E já agora — em tempo ainda —, recorde-se que foi em Angra, frequentando a Biblioteca Municipal, depois em Ponta Delgada (pelos jornais), que Pedro da Silveira, preparando-se a ler e reler, começou nas Belas Letras, servindo-as desde logo, bem cedo de idade, e a servir-se aplicadamente — e com o poder de robusta memória — de quantos livros compulsava em termos positivos de cultura.
Este rapaz que ainda o é, embora curvado pelo peso dos anos, porém de íntegra cerviz, permanece a um modo seu, tão pessoal, quanto em Lisboa, quanto na ilha das Flores natural, quanto por aqui e por além, sempre ou estimadamente ouvido ou só escutado, sem perder palavra onde é ela precisa ou onde, entende, ser necessária. Tudo, como ainda há pouco na Nova Inglaterra e na Califórnia. É o Pedro da Silveira, admirador em pleno dos seus conterrâneos Mesquitas e Alfred Lewis, como de tantos poetas e prosadores do mundo em fora.
Pois é, até mesmo quando — a propósito de Antero traduzido para chinês (algo que me foi dado trazer a este mesmo jornal) — viria a admitir que talvez o tradutor do poeta Antero tenha sido o então director da Biblioteca Nacional de Macau Luís Gonzaga Gomes [1907-76], seu parente por afinidade, a quem eu próprio também segui e a quem talvez eu pudesse ter sucedido no cargo, lá tão longe no Oriente... Mas fiquemo-nos por esta Mesa (Re)posta de Amigos, juntando outro breve mas significativo dado, o de que Jorge de Sena, de costela açoriana, foi como Antero passado a chinês pelo seu O Físico Prodigioso.
Falta trazer à colação que a sua ilha natal, as Flores, o rodeou neste ano dos seus oitenta, aliás o ano em que também lhe demonstraram apreço público em comunidades açorianas da Nova Inglaterra e da Califórnia.
É assim: Mesa (Re)posta de Amigos, graças ao Pedro e àquele outro editor.

João Afonso
A União, Angra do Heroísmo, 31 de Outubro de 2002, p. 8.
Muito provavelmente, o último artigo sobre Pedro da Silveira
publicado nos Açores, antes da sua morte a 13 de Abril de 2003.

1 O posfácio a Mesa de Amigos (Assírio & Alvim, 2002) foi incluído na 2.ª edição IAC de Fui ao Mar Buscar Laranjas (Poesia Reunida, 2022, pp. 383 -88), desta forma integrando — pela primeira vez — a tradução de poesia no seu próprio trabalho poético.

Vasco Rosa 

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