Diário dos Açores

“Gente da minha terra, Povo de São Miguel!”

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Parece que ainda estou a ouvir o primeiro Reitor do Santuário da Esperança, Monsenhor José Gomes, com a sua voz timbrada e forte, a dirigir-se aos devotos do Senhor Santo Cristo, no sermão após a mudança da Imagem.
Fazia-se um piedoso silêncio no adro para todos escutarem o sermão do apreciado pregador. Ninguém arredava pé dali.
Foi em 1958, é verdade, e toda “A Ilha em prece” se prostrava diante da centenária imagem do Senhor, no pretório de Pilatos.
Só quem não pudesse ficava em casa, pelo que a cidade era um mar de gente piedosa e reconhecida pelas graças recebidas.
Os tempos eram outros, é verdade, - tempos de cristandade, de angústia, de incerteza, perante uma pobreza que mirrava os corpos e os sonhos de tanta gente trabalhadora, sem justa paga e sem horizontes.
O negrume das suas vestes evocava o sofrimento de suas vidas, quase semelhante ao do Seu Senhor.
O Poeta Oliveira San-Bento, num opúsculo publicado em 1946 pelo “Diário dos Açores”, com papel produzido em São Miguel,1 expressou neste soneto os sentimentos, as dificuldades e a Fé do Povo de São Miguel:

Senhor, a ilha é vossa: protegei-a
e a festa é Vossa e a maior da Ilha
dia pleno de Crença e maravilha...
Senhor, a terra é Vossa: - defendei-a!
…............................
    
derramai sobre nós olhar piedoso
Consolador de pranto doloroso,
redentor de almas tristes e cativas!
    
Decorridos 65 anos, atrevo-me a dizer que a Festa do Senhor Santo Cristo perdeu o fulgor que conheci em criança e que me serve de termo de comparação.
Sei que os tempos são outros, que as mentalidades mudaram muito, que já não vivemos num ambiente de cristandade em que tudo girava em torno do ciclo religiosa e litúrgico.
A sociedade abriu-se a outras manifestações religiosas e culturais, mercê da liberdade religiosa, da laicidade ou não confessionalidade do Estado, da separação de poderes entre a Igreja e o Estado, princípios que, na prática, são difíceis de concretizar, dada a carga histórica do estreito relacionamento ( e porque não dizê-lo: interdependência) entre as duas entidades. Os exemplos do que afirmo são por demais evidentes.
Estas alterações societais refletiram-se na devoção ao Senhor Santo Cristo.
Creio até que, se não fossem os emigrantes micaelenses e a diáspora em geral que levaram na sua bagagem cultural e  identidade uma Fé convicta nas graças concedidas, a maioria dos residentes na ilha do Arcanjo já teria esquecido a piedade e devoção de seus avós.
Apercebendo-se do declínio, os responsáveis pelo Santuário e a hierarquia diocesana optaram por trazer a São Miguel altos dignitários da Igreja para presidir ao cerimonial litúrgico, pensando que isso daria um novo fôlego à devoção popular. Mas isso não resultou. Ao contrário,  traduziu-se numa forma de clericalismo que tarda em apagar-se da dinâmica eclesial.
O culto ao Senhor Santo Cristo tem de ser evangelizado numa perspetiva sinodal, com a participação de todo o Povo de Deus.
As manifestações da religiosidade popular impõe uma séria reflexão que vise depurá-las de desvios que roçam práticas desumanas, sacrifícios corporais, superstições e crendices, que contradizem a Bondade e a Misericórdia Divinas e desacreditam a força transformadora da Páscoa da Ressurreição na economia da Salvação dos homens.
Essa reflexão tem de ser feita a partir do próprio Santuário, como polo irradiador do anúncio da Palavra de Deus, do fomento da vida litúrgica e do cultivo de formas aprovadas de piedade popular (Cân. 1234).2
Tradicionalmente, todas as paróquias da ilha envolviam-se no culto ao Senhor Santo Cristo de tal modo que, no fim de semana da Festa, adequavam-se os horários das celebrações paróquias às cerimónias do Santuário, para onde convergia a maioria dos fiéis da Ilha. Essa atuação da pastoral de conjunto deve ser aprofundada e desenvolvida pois produz dinâmicas eclesiais importantes.
Se tivesse havido uma programação concertada com paróquias e ouvidorias,  certamente não se realizaria esta noite na Lagoa na igreja Matriz um concerto pago (!) para assinalar 150 anos da entronização da imagem de Nossa Sra do Rosário. Por melhor que seja o concerto. Tudo tem o seu tempo.
No Sábado do Senhor, por tradição, o Campo de São Francisco é local de confluência de milhares de peregrinos e devotos de toda a ilha. Desvalorizar este hábito muito antigo é desconhecer os contornos da identidade cultural micaelense.
O Santuário da Esperança tendo como exemplo outras instituições do género de âmbito nacional deve, pois, assumir uma função primordial no dinamismo pastoral da Ilha.
Outras atividades económicas competem a empresas do ramo, com quem a Diocese não deve concorrer, a não ser em circunstâncias muito específicas.
A “Alma do Povo Micaelense”, parafraseando o Pe Ernesto Ferreira, saberá, em cada momento da história, afirmar e preservar a sua Fé no Ecce Homo e na Igreja, como sinal de Salvação.
Mais do que os milhares de luzes e de outros adereços que podem desviar as atenções do essencial, foquemo-nos na Mensagem da festa do Senhor, na alegria do convívio e do encontro que traduzem as nossas mais profundas convicções cristãs.
Boas Festas!

1 San-Bento, Oliveira, A ILHA EM PRECE, Of. do “Diário dos Açores”, Ponta Delgada, 1946
2 Código de Direito Canónico, Editorial Apostolado de Oração-Braga, 1983

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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