Diário dos Açores

Canoas pelo mar fora

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Em anos recuados, a safra do atum iniciava-se, habitualmente, em maio.
As traineiras do grupo central, de cara lavada e aspeto renovado, concentravam-se no porto de Ponta Delgada por alturas das Festas do Senhor Santo Cristo para os últimos preparativos da safra, aguardando a chegada dos primeiros cardumes aos mares de Santa Maria.
Recordar esse belo e desaparecido cenário da frota marítima açoriana é sinal de que os ciclos da vida são efémeros.
Assim sucedeu com o ciclo da baleação, cujas capturas terminaram em 1986, no Pico e alguns anos antes na Ilha de São Miguel.
O micaelense Amâncio Júlio Cabral foi pioneiro da caça à baleia na ilha do Arcanjo, tendo  encomendado no Faial 2 canoas.
Em 1886, iniciou a atividade baleeira a partir do porto de Vila Franca do Campo, embora fosse sua intenção fazê-lo no porto das Capelas, na costa norte, por onde passavam mais cachalotes.     Quando outras companhias cessaram a sua atividade, Amâncio J. Cabral estabeleceu-se definitivamente nas Capelas. Lá procedeu ao aproveitamento dos cetáceos,1 até que a fábrica dos Poços de São Vicente foi construída em 1939 tendo mantido atividade até 1970.
Não pretendo aprofundar o desenvolvimento da indústria baleeira em São Miguel. Albano Cymbron, para quem pretenda investigar o tema, fá-lo com profundo conhecimento no livro: “A FASE INDUSTRIAL DA BALEAÇÃO MICAELENSE (1939-1970)”, editado em 2011, pelo OMA - Observatório do Mar dos Açores.
Também não quero abordar, de novo, a escandalosa destruição do edifício da única fábrica da baleia existente em São Miguel, perante o silêncio de quem tinha por obrigação zelar pela preservação do património industrial e cultural coletivo.
O tema nunca foi bem explicado por quem de direito. E merecia, porque ignorar a importância económica e cultural do ciclo da baleação é apagar um período histórico da nossa atividade marítima e da nossa própria emigração.
Parece estranho que há 30 anos os arquitetos que conceberam o espaço interior do Parque Atlântico tenham pretendido destacar símbolos importantes da atividade baleeira, como o Cachalote de grandes dimensões, o bote Santa Joana e o guincho, e que, ao contrário as nossas autoridades não tenham aprendido o valor desses ícones, nem assimilado aquela mensagem...
Noutras ilhas, a cultura proveniente da caça à baleia foi acautelada e valorizada, com o empenho popular. Não só o património industrial, como mantém intacto, no Museu dos Baleeiros e noutras instituições do género existentes nas Flores e no Faial, um rico espólio etnográfico muito apreciado pelos visitantes.
Da atividade baleeira, terminada com a última captura em 1986, ficaram botes e lanchas baleeiras que vêm sendo recuperados à medida que os jovens – rapazes e raparigas - se envolvem na prática desportiva das regatas à vela e a remo.
Neste âmbito, é de louvar a iniciativa do Município das Lajes do Pico por promover um Workshop de reconstrução do Bote Baleeiro em junho próximo, orientado pelo Mestre José Tavares. Destina-se essa iniciativa a despertar o interesse dos mais novos nessa profissão e a ensinar os processos de construção de uma das mais belas embarcação, única no mundo, criada pelo mestre Experiente, picoense, natural das Lajes.
Abre-se, portanto, uma série de novas perspetivas à utilização do bote baleeiro, que passa por integrá-lo na crescente promoção e desenvolvimento do “whale-watching”, explicando a sua antiga função na caça à baleia.
Não há que ter medo de lembrar aquela atividade a qual moldou a nossa cultura e envolveu a vida de tantos marinheiros, cujas famílias dela dependeram durante algumas décadas. Foi mesmo um dos nossos maiores produtos de exportação.
Seria um erro crasso, ditado por uma mentalidade pseudo-ecológica, que propositadamente ignorássemos esse passado, ou nos envergonhássemos por, durante mais de meio século, ter-se capturado nos mares dos Açores, centenas de cetáceos e de os ter transformado em óleo, adubos e objetos artesanais também designados por “scream-show”.
É por isso que é importante manter e desenvolver a tradição das regatas. Sem elas “não há futuro para os botes baleeiros” - afirmou Neuza Azevedo, presidente da Associação de Classe Bote Baleeiro Açoriano (ACBBA) numa entrevista concedida ao semanário picoense “Ilha Maior”2. E explicou: “É preciso que ganhem uma nova relevância, através do desporto e do turismo”.
A ACBBA tem por missão animar e gerir os botes baleeiros, e oferecer as modalidades de remo e vela para adultos.
Na Ilha de São Miguel existem, presentemente, três canoas baleeiras: “Senhora de Fátima” da empresa Terra Azul, de Vila Franca do Campo, o “Veloz” (1901) faialense, a mais antiga do património baleeiro, de Alain Braud, e o “Santo André”, do Clube Naval de Vila do Porto, cujo casco é em dupla diagonal, construção típica desta ilha.
No Parque Atlântico está exposta a canoa “Santa Joana” que entrou em atividade há precisamente 70 anos e é propriedade do Museu “Carlos Machado” de Ponta Delgada.
É pena que estas embarcações baleeiras não tenham atividade desportiva ou comercial.
Nas restantes ilhas, agora que os dias começam a crescer, é habitual as canoas com companhas masculinas ou femininas treinarem-se ao longo da costa para provas dos campeonatos das duas modalidades, realizadas ao longo do verão.
A beleza da canoa à vela e a destreza e experiência do oficial e demais tripulação, enfrentando a velocidade do vento ou a falta dele, geram sempre nos espetadores grande entusiasmo e espetativa.  Por outro lado, só a força braçal e a tenacidade dos remadores (homens e mulheres), treinados semanas a fio, garantem a vitória e os aplausos aos vencedores.
Continua a ser assim em muitas localidades que se orgulham da atividade baleeira.
Em várias ilhas dos grupos ocidental e central a canoa baleeira recuperou a sua importância patrimonial e desportiva.
Falta a São Miguel integrar-se também nessas iniciativas, pois as regatas são exemplo do tipicismo das nossas embarcações e o reconhecimento da identidade açoriana.
1 Revista “Os Açores”, setembro 1922,pgs 20-21.
2 Jornal “Ilha Maior”, 5-05-23, pag 7

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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