Vasco Rosa lança livro amanhã em Ponta Delgada
Diário dos Açores

Vasco Rosa lança livro amanhã em Ponta Delgada

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Pré-Publicação

A mão de Eduíno

Armando Côrtes-Rodrigues, Ruy Galvão de Carvalho e João Afonso leram os primeiros poemas de Maria Madalena Monteiro Férin, assim dita, visando cada um à sua maneira a respectiva divulgação e impressão, mas foi Eduíno de Jesus, um ano menos novo do que ela, quem poliu, ordenou e depois prefaciou o seu livro de estreia. A Correspondência de Côrtes-Rodrigues e Jesus, editada em 2002 pelo Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, permite-nos seguir esse processo a par e passo, para enfim perceber quem fez o quê num livro que logo depois ganharia um prémio nacional, ainda que com nome dum açoriano, Antero de Quental.
A 25 de Julho de 1955, Eduíno é instado por Armando para que, nas suas férias de verão em São Miguel, vindo de Coimbra, leve consigo os poemas de Madalena, «tão cheia de verdadeira poesia» (p. 158), para que possam falar «longamente sobre eles para uma futura edição» (p. 98). Estamos, portanto, a cerca de um ano e meio do livro impresso, ainda a cheirar a tinta. A 13 de Outubro, do Lorvão Eduíno anuncia o próximo envio: «Não o fiz mal cheguei cá, por causa de fazer as tais anotações. Vou relê-los com atenção e dentro de dois ou três dias enviar-lhos-ei» (p. 278). Duas semanas mais tarde, escreve: «Vou pôr no correio os poemas de Madalena Férin, sob registo. A minha opinião é que aquilo deve ser publicado tal como está, pois as imperfeições são a cada passo e corrigi-las todas era refundir o livro» (p. 280). Ainda assim, confrontando as páginas de Poemas com  versões saídas na revista 4 Ventos de “Manhã pagã” e de  “Mar de oeste”, encontram-se variantes de pontuação que testemunham um derradeiro cuidado de precisão («coisas insignificantíssimas que tomo a liberdade de corrigir sem consultar a autora», p. 331).
Numa carta não datada, mas que parece ser já do fim desse ano, Côrtes-Rodrigues aflora a hipótese de João de Castro Osório os poder editar, em Lisboa (p. 112), pois «bem mereciam ver a luz do dia», escreve mais tarde, a 15 de Fevereiro de 1956 (p. 140), quando já se desenha um dinâmico acordo geral entre o Instituto Cultural de Ponta Delgada e a Coimbra Editora, tipografia e livraria depositária. Em Agosto concordarão em dar ao «nosso» João Afonso «2 ou 3 poemas» de Madalena Férin para serem publicados na página literária do Diário Insular de Angra do Heroísmo (p. 162); alguns poemas já haviam sido dados a conhecer em revistas de Lisboa e Braga, em 1954-55. A 6 de Setembro, numa visita a Santa Maria — «esta ilha extraordinária, tão feia por fora como bela por dentro e duma incrível riqueza folclórica» —, Côrtes-Rodrigues apela: «Estou em casa do Armando Monteiro, ao lado da Madalena, a poetisa. Precisamos de resolver quanto antes a edição do livro» (p. 162).
Do Lorvão, a 10 de Outubro de 1956, Eduíno de Jesus escreve — e esta carta é deveras importantíssima para se conhecer a fábrica do livro — o seguinte: «Está ordenado e paginado. Com prefácio e tudo, ficará com umas 112 páginas. Não sei se a autora estará ou não de acordo com a minha ordenação dos poemas. Eu apenas procedi como se os poemas fossem meus. Comecei pelos poemas exultantes, glorificação da manhã, da natureza, etc., seguindo-se as primeiras desilusões, as tempestades, as evasões, depois os primeiros alvoroços do amor, depois o amor, a fecundação, a maternidade; e finalmente o cansaço, a aspiração ao repouso final, o sonho para depois da morte. Acha bem?» Deixa uma dúvida por esclarecer: «Há no livro um poema dedicado a Christian Anderson. É alguém com esse nome ou é o contista nórdico Christian Andersen? Pode-me saber isso? É que, se for o contista, não é Anderson mas Andersen» (pp. 329-30). E apela a um consenso entre pares (que, note-se bem, 37 anos separam na idade...): «No poema, com que o livro abrirá, “Mensagem”, há uma emenda a tinta que, na minha opinião, não devia existir. Como está (emendado), está assim: “Poetas, é preciso romper a amanhã: | Que a poesia seja virgem de palavras!” Como estava, era assim: “Poetas, é preciso romper a amanhã: | Em que a poesia seja virgem de palavras!” — Se este poema fosse meu, cortava-lhe simplesmente os dois pontos e deixava ficar o Em. Creio que era esta a ideia de Madalena. É preciso que nasça a manhã na qual a Poesia não precise de palavras. Ou não seria? [...] Além de tudo, há alguns poemas sem título. Como a grande — uma muito grande — maioria tem título, achei melhor que também esses tivessem. Pus-lhe como título o primeiro verso, ou as primeiras palavras do primeiro verso ou (mais raramente) quaisquer palavras do poema. Fiz mal? (pp. 331-32).
Havia ainda que decidir o título. «A Madalena já escolheu um título?», inquire Eduíno em carta de 25 de Outubro. E revela: «Não concordo com o que me deu o Dr. Ruy [Galvão de Carvalho], porque não é muito original [...] e porque nada tem a ver com a natureza dos poemas de Madalena. Em todo o caso, quem decide é a autora. Se ela estiver de acordo, e na hipótese de lhe não ocorrer nenhum título, porque não se chama o livro simplesmente Poemas?» Mas ressalva: «Claro, isso não é comigo, mas sé preciso saber o título para o livro começar a ser composto [isto é, impresso]. Quando vier a ordem para que o livro entre no prelo, agradecia que viesse também o título» (p. 331).
A decisão do Instituto é tomada pouco depois, a 12 de Novembro. Eduíno recebe «carta branca para resolver como entender», e o trabalho é oficialmente destinado à colecção Arquipélago, que ele e Jacinto Soares de Albergaria haviam criado em 1951, e cuja disponibilidade Eduíno expressara em carta recente: «Se o volume de poesia de Madalena Férin poderia ser publicado na colecção? Mas com certeza!», diz. «É sem dúvida a maior poetisa açoriana de todas as que conheço» (p. 303; itálico meu). E antevendo qualquer nova querela com Soares de Albergaria («Triste ideia a minha quando aceitei “fazer” uma colecção a meias» (1 de Novembro de 1955; p. 303), sublinha, firme na sua «autoridade editorial»: «O Jacinto não tem nada que estar ou não pelos ajustes. Estou eu. Está o meu bom amigo. Está a autora» (p. 303). «O que falta é a boa vontade da Coimbra Editora para não demorar a edição», responde Armando a 13 de Novembro e à p. 165. Mas não faltou, de facto, pois em Fevereiro de 1957 Poemas estava impresso, como documenta correspondência comercial já referida.
Em post-scriptum da carta de 30 de Dezembro, Armando cita: «A Madalena escreve-me e diz-me de si isto que lhe transcrevo porque tenho o gosto que possa ler estas palavras de justiça e admiração: Ainda não lhe falei do Prefácio do Eduíno. Achei-o maravilhoso, tudo girando em volta da primeira poesia [“Mensagem”]. Ele tem um grande futuro aberto à sua frente, com a sua profundidade, a sua capacidade de compreensão e clarividência. — Quem me dera escrever assim, ver claro através do opaco. Gostava de conhecer o livro ou livros de poesia dele. Onde se vendem? Poderia pedir-lhe um? Se for para longe, gostaria de levar de todos os nossos grandes uma recordação».
Um ano depois — e foi um ano muito pesado para Côrtes-Rodrigues em termos pessoais e familiares —, chega a notícia do Prémio Antero de Quental (Poesia) do Secretariado Nacional de Informação. «O caso é tanto mais para admirar — sublinha, jubiloso, Armando — quanto ela não conhecia ninguém nem ninguém a conhecia a ela» (p. 190; itálico meu). A 11 de Julho de 1958, porém, agasta-se com o facto de a imprensa açoriana ter sido indiferente à concessão daquele prémio, mas também por a autora não ter correspondido a telegramas de congratulação («e nem um ai!», p. 194). Não foi, todavia, o único a queixar-se: «Há séculos que não sei dela. Nunca mais me escreveu nem acusou o recebimento do meu livro [ A Cidade Destruída durante o Eclipse, Coimbra Editora, 1957]» (carta de 5 de Julho de 1958; p. 355).
Na verdade, ainda nem sequer se conheciam pessoalmente, mas o futuro reservou-lhes uma bela e longa amizade, além do mútuo apreço literário. Logo em Novembro seguinte, referindo-se com entusiasmo ao seu projecto de criar em Coimbra um Jornal de Poesia, todavia nunca concretizado, disse contar com colaboração inédita de Madalena Férin. Ao fim e ao cabo, a 18 de Novembro de 1958 — dois anos antes — Eduíno de Jesus havia escrito a Armando Côrtes-Rodrigues o seguinte: «Quando escrever a Madalena Férin, diga-lhe que nada tem a agradecer e que é com o maior prazer que trabalho a bem da Poesia. Como ninguém liga aos poetas, somos nós que temos que fazer alguma coisa uns pelos outros» (p. 334). Está certo!...

Vasco Rosa *

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