Pico: Fim-de-semana em Festa
Diário dos Açores

Pico: Fim-de-semana em Festa

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Este é um fim-de-semana festivo para as ilhas do Triângulo. Hoje e amanhã, as freguesias de São Mateus e da Calheta de Nesquim celebram as Festas do Senhor Bom Jesus, cujas imagens, em corpo inteiro, representam o episódio evangélico do Ecce Homo, no pretório de Pilatos.
A devoção tem origem em Francisco Ferreira Goulart, picoense emigrado no Brasil que ao regressar à ilha, em 1855 ou 56  decidiu encomendar uma imagem do Bom Jesus, muito venerada, cópia das que viu em Iguape, muito antiga cidade do sul do Estado de São Paulo.1
A imagem chegou a São Mateus em 1862 e “a freguesia surgiu de entre as lenhas e os matos da ilha negra”2. Francisco Ferreira emigrante entregou-a à Igreja Paroquial onde foi seu devoto acompanhante e responsável das oblatas dos fiéis comprovadas em documentos do arquivo paroquial. Essa função não lhe deu quaisquer proventos, pois, segundo notícia do seu falecimento, Francisco morreu pobre.
A devoção à imagem do Senhor Bom Jesus, espalhou-se por toda a ilha e pelo Grupo central, de tal forma que a Festa que hoje e amanhã se realiza no Santuário Diocesano de São Mateus, elevado a essa categoria em 1 de julho de 1962 por D. Manuel Afonso de Carvalho, constitui, ainda hoje, a maior celebração religiosa do Grupo Central do Arquipélago.
A evolução registada nos últimos cinquenta anos muito pouco se compara com as dificuldades de acesso àquela localidade, se bem que ainda haja quem, por promessa, vá ao santuário estes dias em peregrinação.
Bem diferentes, os tempos de outrora. Segundo o Pe Júlio da Rosa,3 “a ilha do Pico, a meados do século XIX, não tinha estrada em volta da Ilha. Da Madalena ao Cais [do Pico] e à Terra do Pão, pelo norte e pelo sul, eram as únicas estradas.”
O historiador faialense, sob o título “Todos os caminhos davam para São Mateus” faz um relato vivo e pormenorizado dos preparativos da festa: 
“As famílias transportavam-se com os idosos e as crianças em carros de bois, havia mesmo     carros de bois no Cais do Pico, no porto, para alugar aos romeiros de São Jorge. Eram vistosos esses cortejos. (…) A festa do Bom Jesus começava no porto [de São Mateus], com a chegada do fogo: a rapaziada acorria aos magotes em algazarra, cada um tomava uma peça de fogo, que trazia até à igreja, e era guardada na casa ao lado do Império. (…) O porto era o vestíbulo da festa que ali tinha acesso à grande romaria que navegava nos iates: Santo Amaro, [Chalupa] Helena, Ribeirense, Espírito Santo e Andorinha; depois o Terra Alta. (...) A freguesia enchia-se de gente de todos os quadrantes do arquipélago, parecia uma feira, com caras, vestidos e linguagens desconhecidas. (...) Toda a gente fazia negócio e oferecia casa para dormir. As senhoras dormiam na moradia, os homens na atafona, arrumada em camarata no segundo piso, com colchões a lastro, de lado a lado, com corredor a meio; (...) Não havia melhor hospedaria, gratuita...Casa onde não havia hóspedes não havia festa. A freguesia era um enorme hotel sem preços nem cortesias. Não havia dinheiro que pagasse três dias de dormida. Vinham das ilhas de leste os romeiros na antevéspera. Na véspera o mar todo era uma estrada do Faial ao Pico. Paravam as tarefas, eram dias de festa – a Festa do Bom Jesus de São Mateus.”
As portas da Igreja não se fechavam – acrescenta o cronista - pois não havia bancada. Todo o espaço era um dormitório. Até que o pároco Joaquim Vieira da Rosa, regressado dos EUA, personalidade de grande prestígio no seio do clero, músico, autor de um catecismo em inglês,  austero, íntegro e grande impulsionador da Festa, tomou a iniciativa de colocar a bancada e de proibir dormir no templo.
Desde muito novo habituei-me a participar na Festa, juntamente com outros seminaristas, convidados para ir de véspera e participar nas cerimónias litúrgicas. Éramos hóspedes do pároco. Mais tarde Reitor do Santuário ampliou o passal fronteiro ao adro da Igreja de São Mateus, dotando-o de instalações adequadas.
Recordo a evolução registada na decoração e iluminação do templo e das ruas circundantes até ao Paço; o enorme crescimento do número de viaturas de transporte individual e coletivo que enchiam as ruas circundantes; a enorme afluência de visitantes e de fiéis, assistindo na véspera e no dia da Festa aos sermões contínuos, às missas e à extensa procissão que ora ía ao porto, ora passava por outras ruas da mesma localidade, acompanhada de um apreciável número de bandas de música de São Jorge ou da Terceira, do Faial e do Pico. Todas se preparavam com o máximo cuidado e empenho para as atuações do arraial da véspera nos coretos junto ao adro, sempre escutadas por imensos apreciadores. Na rua principal circulava-se aos encontrões tal o número de passeantes: faziam-se promessas de amor fiel e de amor platónico e confraternizava-se com amigos e familiares, e em esplanadas improvisadas provavam-se petiscos e o bom vinho de cheiro.
Não são muito diferentes as Festas de hoje. Talvez menos concorridas por gentes do Pico e de outras ilhas, provavelmente mais esclarecidas de que o Bom Jesus, sejam quais forem as invocações, é o mesmo e único Jesus onde quer que se O adore.
É o caso do Bom Jesus da Calheta de Nesquim, cuja imagem foi  oferecida à igreja local por Maria Filomena Gomes, em 1906. 
A falta de comunicações com a Ponta da Ilha, com atrás se disse, levou a que o culto ao Ecce Homo – o Bom Jesus do Longe, como diz o povo - fosse também ali celebrado pelos fiéis. A festa foi impulsionada pelo Pe Adolfo Ferreira e ainda se mantém nesta mesma data.
Duas Festas, um só Senhor, Crucificado e Ressuscitado, que os católicos celebram na ilha do Pico, neste histórico primeiro fim de semana de Agosto, em simultâneo com a Visita do Papa Francisco às Jornadas Mundiais da Juventude de Lisboa.


1  Rosa, Pe Júlio, Senhor Bom Jesus de São Mateus – 150 anos de culto, Santuário Diocesano do Sr. Bom Jesus Milagroso do Pico, 2012
2 Opus cit, pg 59
3 opus cit. pg 35

José Gabriel Ávila*
*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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