Diário dos Açores

De regresso ao Pico dez anos depois (9)

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Na manhã do meu último dia no Pico estava aprazada uma visita à célebre Cerca dos Frades, mas antes disso resolvi dar a volta à ilha na companhia do meu parceiro António Mendes Nunes. Faz-se em pouco mais de uma hora e devia ser obrigatória para toda a gente que visita o Pico. Ver a Natureza em todo o seu esplendor e a beleza da montanha, onde as vacas, mas não só, se sentem donas da paisagem, é um autêntico privilégio. Com o olhar atento é possível descortinar um sem número de aves e quando se para o carro descobrimos um autêntico jardim botânico.
Quando se vai da Madalena em direção às Lajes do Pico percebe-se por que razão o povoamento da ilha começou por lá, pois surgem as primeiras terras chãs e os campos de cereal. A vinha está omnipresente, mas só até à cota dos duzentos metros, e fiquei feliz por ver muitos currais recuperados.
Chegámos à loja de vinhos da Cerca dos Frades, no Farrobo, por volta do meio-dia e já tínhamos o nosso anfitrião Tito Silva à espera, para visitarmos as vinhas. São poucas centenas de metros por caminhos ladeados de currais cheios de vinha. A certa altura deparo com uma torre, meia em ruínas, feita em rocha basáltica, que o nosso guia diz ser de um antigo forno de cal, pertença dos frades. Fiquei intrigado, pois não consegui entender onde iam buscar a matéria-prima para fazerem a cal. Durante o percurso procurei saber algo sobre a história do local e quais os frades que eram os senhores da região. Tito Silva disse que deviam ser os Franciscanos, mas não tinha a certeza.
Ao chegarmos ao destino notámos, perfeitamente a diferença da Cerca dos Frades das vinhas dos vizinhos, constatando que a propriedade era diferente das outras. O que mais impressionava era a altura dos muros dos currais, que nas extremas da propriedade atingia 3,40 m. Por que razão tal acontecia? Será que eram os frades que administravam diretamente a propriedade? Ou deixavam essa tarefa aos rendeiros, como era norma no passado? Tito Silva não me soube dar resposta e eu sugeri que indagasse o passado da sua quinta ou falasse com historiadores, pois a qualidade do seu projeto e, sobretudo, dos seus vinhos obriga a conhecer em profundidade a história do local. Sente-se, aliás, a falta de um livro sobre a vinha e o vinho do Pico.
Quando entrámos dentro da propriedade, Tito convidou-nos a olhar com muita atenção para os currais, pois tinham segredos para contar. O primeiro foi reconhecer como os picarotos antigos trabalhavam o lajido para montar os currais, pois ainda era possível ver blocos de lava junto ao lajido de onde tinham sido retirados. Mais à frente, disse-me para olhar com atenção para um muro, mas não vi nada digno de nota. Foi preciso ele indicar-me dois buracos ao nível do chão! Não tinha sido descuido de quem fez o muro, mas feitos de propósito com objetivos vários. Um deles era para montar as armadilhas dos coelhos ao lado dos buracos, pois como estes eram pontos de fuga dentro do curral, os ditos iam diretos às armadilhas quando alguém os assustava. Também eram usados para apanhar as galinhas, com a mesma técnica usada para os coelhos, pois quando as vinhas não tinham uvas era frequente deixá-las por lá. Os cães de caça também gostavam de se pôr à saída dos buracos, pois tinham muito sucesso sem se cansarem demasiado.
A certa altura descemos da carrinha e Tito disse-nos para olharmos por trás de um muro e encontrámos uma casota em ruínas. Ele não sabia exatamente para que servia, mas calcula que fosse para guardar as alfaias agrícolas, pois ainda se reconheciam as marcas para colocar as trancas da porta. Fiquei a pensar no assunto, pois em alguns locais mais remotos do Continente ainda hoje é vulgar ver essas casotas, que serviam de locais de vigia quando as uvas estavam quase maduras. É, aliás, uma tradição mediterrânica, pois no passado, com o flagelo da fome, havia muita gente que ia às uvas do vizinho quando tinha a barriga a dar horas. Fiquei encantado com os segredos das vinhas do Pico, que ainda hoje testemunham uma sabedoria popular em vias de extinção.
A certa altura Tito Silva chamou-nos a atenção para os tomateiros que havia entre as videiras e que, segundo ele, dão tomate cherry delicioso. Provavelmente foram os pássaros que levaram para lá as sementes e a fertilidade da lava vulcânica e a humidade fizeram o resto.
Uma marca distintiva da Cerca dos Frades reside no facto de muitas videiras estarem protegidas por muros em meia lua em vez de currais. Foi uma originalidade criada por Tito Silva, quando começou a recuperar a propriedade do avô. Antes, os muros em meia lua, mais altos que os dos currais, eram usados para proteger as figueiras da nortada e do vento oeste. Fiquei na dúvida se foi uma cultura alternativa à vinha, quando esta foi destruída pelas pragas e doenças vindas da América, ou se foi um complemento à vinha então existente, anterior às ditas pragas. Parece um detalhe insignificante, mas para um enólogo que gosta de história do vinho é fundamental, para perceber como era feito o famoso licoroso que tornou o Pico conhecido na Europa aristocrática. De facto, grande parte do figo deveria ser usado para fazer aguardente, que tanto podia ser vendida como tal, como para aumentar o grau do vinho ou para parar a fermentação e fazer licoroso. Sei que uma das tradições era fazer o licoroso com uvas sobremaduras ou com passas, mas com a invenção da aguardente, de vinho ou de figo, é provável que os frades a usassem. Aqui fica mais um desafio aos historiadores do Arquipélago.
À medida que íamos percorrendo a Cerca dos Frades estava cada vez mais surpreendido com a dimensão das vinhas e o trabalho gigantesco que foi resgatar os currais à floresta densa. Tito Silva deixou os troncos de algumas faias e de incenso para nos apercebermos da dificuldade da arroteia. Também deixou alguns pinheiros como homenagem ao avô, que os tinha plantado muitas décadas atrás. Formam uma ilhota no meia das vinhas onde Tito pretende, em breve, fazer uma aprazível esplanada para provas de vinhos, virada para o vulcão.
Quando lhe perguntei se tinha ideia de continuar a alargar a área de vinha disse: Nem pensar! Perguntei-lhe, então, se tinha ficado arrependido de se tornar vitivinicultor. Disse-me que não, mas não imaginava que fosse tão doloroso! Confessou-me, que este ano já fez 12 tratamentos contra os fungos e, mesmo assim, ainda se veem cachos atacados. Perguntei-lhe quando era a vindima e ele suspirou, pois as uvas ainda não estão maduras e anda com o coração nas mãos por causa da chuva. Já “levantou” as videiras, mas calcula que só daqui a duas semanas possa vindimar. Fez questão de me mostrar como se faz a “levanta” e pegou numa pedra basáltica para pôr por baixo de uma videira depois de a levantar. Eu disse-lhe que em Colares fazem a mesma operação, mas com caniços chamados pontões.
Também lhe perguntei se os pássaros lhe comiam muita uva e ele deitou as mãos à cabeça dizendo que era uma das piores pragas da ilha. Contou-me que em vindimas anteriores chegou a ter mais de 50 alqueires de vinha em que não havia um cacho para vindimar, tal a devastação causada pelos pássaros. De facto, produzir vinho no Pico continua a ser um ato heróico, só ao alcance de alguns teimosos.
Saímos da Cerca dos Frades com uma sensação mista de satisfação e apreensão, pois a recuperação de grandes áreas de currais abandonados e a produção de vinhos fantásticos era, apenas, uma das facetas da vida dos produtores, que se defrontam com inimagináveis dificuldades e encargos.

 Virgílio Loureiro *

*Virgílio Loureiro é considerado como um dos mais prolíficos académicos, investigadores, enólogos e comunicadores do vinho, com uma prestigiada carreira como docente do Instituto Superior de Agronomia no domínio da Microbiologia.

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