Diário dos Açores

Em louvor de Rabo de Peixe e de Jennifer ou a Princesa de França…

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O tempo estival que convida a uma certa preguiça, podem ser a explicação para o atraso no comentário agora aqui deixado a uma série a um livro, dignos de louvor e reflexão.
Comecemos por Jennifer o último livro de Joel Neto que se lê num fôlego ou no tempo de um voo. Joel é um dos grandes escritores Açorianos da nova geração. Depois de viver em Lisboa alguns anos, regressou à sua ilha, a Terceira, onde vive feliz com a esposa, um filho (o lindo Artur que conheço de fotos) e dois cães. Dali escreve regularmente na imprensa nacional e vai-nos brindando com livros excelentes como “A vida no Campo”,” Arquipélago” ou “Meridiano 28” todos de leitura obrigatória. Nesse regresso à ilha (eu também o fiz numa determinada altura da vida) há um novo olhar da realidade, dado pela idade e vivência numa metrópole, longe das nossas raízes. É dessa nova observação do quotidiano, das rotinas e percursos sempre iguais que nos impõem os limites físicos e o tempo próprio da ilha, que resulta a história da jovem Jennifer que Joel acompanha num bairro social da periferia de Angra. Os problemas que a história de Jennifer aflora não são novos nas nossas ilhas, como aliás são também mas de forma menos grave no resto do país: a pobreza física e às vezes de espírito, a dependência das ajudas sociais, o abandono escolar, a gravidez precoce e tudo o que os rodeia.

Mas Jennifer que Joel segue no seu quotidiano, revela, porém, apesar das dificuldades, a sua enorme vontade de viver e a alegria (ou será esperança?) no carinho que esbanja, na criatividade com que atribui nomes diferentes às pessoas com quem lida, nos sonhos que povoam a sua imaginação infantil. Joel de uma forma comovente, toca na ferida que dói à minha geração. Não fomos capazes de eliminar a pobreza endémica das nossas ilhas. Fomos capazes de construir Aeroportos e portos, de fazer vias rápidas, centros de saúde e Hospitais, criámos um regime autonómico que nos orgulha, mas não resolvemos o problema crucial da educação obrigatória nem o de criação da verdadeira riqueza, a gerada numa agricultura e pescas modernas ou na indústria e não na dependente de serviços ou do turismo sazonal. Estou fora dos Açores há muitos anos, quiçá faltar-me-á legitimidade para esta observação. Mas não é culpa deste ou de governos anteriores, é apenas culpa de toda a minha geração.
E é o mesmo sentimento de culpa em Jennifer que me traz a Rabo de Peixe, talvez a terra mais pobre de Portugal senão de toda a Europa, trazida à atenção internacional pela série da Netflix com o mesmo nome, realizada este ano por Augusto Fraga.
Como quase todas as boas histórias a trama ou o scenagio (como lhe chamam os Italianos) é inspirada em factos reais.
Augusto Fraga é um jovem realizador de grande sensibilidade. Conheço a sua mãe (professora Universitária e uma artista musical de excelência) e conheci o seu avô e tio avô professores e gente de enorme cultura. Augusto Fraga cresceu, pois, num caldo de gente de cultura e herdou sem dúvida deles e da educação que recebeu, essa sensibilidade que revela na forma como dirige e no ritmo de realização e edição que imprime à obra.
A série cumpre o que a Netflix promete… entretenimento. Tem algumas grandes interpretações como a de José Condessa, o Eduardo na série, (e que bom ver Albano Jerónimo um actor agora maduro que contratámos então no início de carreira em “Lusitana Paixão”, a última telenovela que a RTP produziu há vinte anos atrás quando eu era então Director de Produção). Mas Rabo de Peixe não é a meu ver uma série Açoriana. Tirando os “beauty shots” e uma ou outra fala com sotaque, a história passa-se em Rabo de Peixe, como poderia passar-se numa ilha Grega ou no Sul de Itália. O tema do narcotráfico é sempre apelativo, pelas fortunas fáceis, pela violência que envolve e as audiências que gera… Claro que mesmo no género, a série não está ao nível de outras da Netflix com o mesmo tema como “Suburra” ou a extraordinária “Breaking Bad” ou ainda da sua prequela “Better call Saul”.Mas para uma primeira obra dessa dimensão, tem sem dúvida enorme mérito.
Duas notas finais: uma para a minha convicção de que Augusto Fraga pela prova dada merece dirigir uma obra Açoriana de grande dimensão. (não Açoriana no sentido fechado do termo, ou seja, para consumo dos Açorianos apenas) mas na Universalidade que todas as histórias têm que ter. Mas sim também com o tempo de produção, o ritmo e até a narrativa que um grande filme ou minissérie exigem, sem a pressão e as guidelines  que as grandes plataformas impõem. A outra nota, para quem erradamente intuiu que Rabo de Peixe é apenas aquilo. Rabo de Peixe reflecte de facto também os problemas e dramas que Jennifer aflora. Mas Rabo de Peixe é uma bela Vila piscatória de gente honesta e trabalhadora. Tive pessoas de Rabo de Peixe que me marcaram para toda a vida. O Dr. Ruy Galvão de Carvalho, ”o Mestre”, meu professor de Filosofia, o maior Anteranista de sempre; o Dr. José da Silva Fraga meu Patrono e um dos maiores advogados dos Açores, o Dr. António Manuel da Silva Melo, amigo, advogado e dirigente da Oposição democrática durante a ditadura, todos já infelizmente desaparecidos e tantos colegas de Liceu de grande inteligência e que se distinguiram em todos os domínios e que não vou citar para não esquecer algum. Esse o Rabo de Peixe de gente simples e boa que a jovem Miriam da idade da Jennifer, deixa aqui neste vídeo, feito já há alguns anos e cujo link reproduzo. Vale a pena escutá-lo, em louvor de Rabo de Peixe!...
https://youtu.be/M4CjhvrpX9g

 Lopes de Araújo *

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