Diário dos Açores

Uma Revista que é um Exemplo

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- Conhecem esta revista, Os Açores?
A pergunta foi feita por Cláudia Cardoso, directora da Biblioteca e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro, no intervalo da captação de um depoimento que deu para um filme. Referia-se a um conjunto encadernado de publicações, por ela trazido para a mesa do seu gabinete.
Não conhecia. Ou melhor: conhecia os seus protagonistas mas não a publicação.  Sentei-me e visitei então importantes páginas de açorianidade. (Escrevi açorianidade e a palavra aparece-me, mais uma vez, sublinhada no processador de texto, como se fosse um equívoco. Um dia, a açorianidade será reconhecida pelo word).
Cláudia Cardoso, ao pesquisar um texto sobre a escultora e cientista Maria Ramos, nascida na Terceira em 1904, demorou-se na leitura da revista Os Açores, e partilhou-a como quem partilha uma raridade: um reduto, no caso jornalístico, capaz de juntar as diferentes ilhas do arquipélago. Um gesto progressista, integrador, unificador, sustentado na ideia, sonhada, vendida mas pouco praticada, de Açores.
A revista, fundada em Julho de 1922 por figuras como José Barbosa, Domingos Rebelo, Armando Côrtes-Rodrigues (começou por ser correspondente em Angra) e Manuel da Câmara Velho de Mello Cabral, em actividade durante alguns anos (com intermitências devido a dificuldades económicas e outras), mostra interesse por todo o chão açoriano. Traz, misturados, sem apartamentos por ilha, textos sobre  os micaelenses Ernesto do Canto e Antero de Quental, o jorgense João de Matos Bettencourt, o faialense Osório Goulart, a livraria  de S. Francisco de Angra,  “a segunda feira de touros” na Serreta, uma viagem de estudantes de medicina em Coimbra à Vila da Calheta, em “Sam Jorge”, a Graciosa, “uma das mais lindas ilhas dos Açores”, uma aviadora americana, Ruth Elder, que passou por Ponta Delgada, um jogo entre o “Faial Sport Club e o Casa Pia Atletico Club”.
A necrologia também cruza figuras das diferentes ilhas açorianas – de diversas proveniências profissionais, sem distinções de distritos. A revista também publicou o conto “Paço do Milhafre, de Vitorino Nemésio, que começa assim (impossível não querer citar): “Espaireçoso sítio aquele de riba da rocha, alcandorado e êrmo, onde as pombas bravas iam leves, pandas, no voejar doidão”.
Ao percorrer, com romântico voejar, a publicação e ao topar os anos em que esteve nas bancas,  chega, com naturalidade,  a ideia de que surgiu num período em que emergia mais uma manifestação das reivindicações autonómicas açorianas. É dado justo destaque aos autonomistas Aristides Moreira da Mota, José Bruno Carreiro e Luiz Bettencourt.
Percebe-se, pelas “palavras preliminares” do número inaugural, que aparece não só para unir os açorianos mas também para, parafraseando-a, dar a conhecer o arquipélago a portugueses e estrangeiros. Aliás, é oferecido um destaque maior a uma visita feita por continentais ao arquipélago açoriano, a Missão Intelectual aos Açores, ou a Visita dos Intelectuais. A que se refere tão pomposa formulação? Os antigos sabem-no. Os novos, não. Um punhado de figuras dos meios intelectuais, culturais e académicos portugueses, de Antero de Figueiredo a José Leite de Vasconcelos, de Henrique Trindade Coelho a Joaquim Manso, que, por iniciativa de José Bruno Carreiro e a convite do jornal Correio dos Açores, visitou o arquipélago entre 27 de Maio e 22 de Junho de 1924.
A iniciativa “Visita dos Intelectuais” dá uma ideia concreta do desconhecimento que havia por parte do continente das elites em relação aos Açores – os Açores todos, note-se, mesmo os anteriormente consagrados como  capital portuguesa. Há fotografias curiosíssimas. Um mui bem apresentado Leite de Vasconcelos algures no Corvo, rodeado de homens – calçados – e um rapaz  - descalço. A legenda: “O dr. Leite de Vasconcelos numa rua do Corvo, pedindo cantigas aos corvinos”. Uns elegantíssimos “”sr. Conde Nova Goa e D. Manuel de Bragança no Parque das Furnas”. O “mestre da estatuária portugueza ao pé d’um modesto oleiro de Vila Franca”.
Já o escrevi, volto a escrever: só pode reivindicar a condição de açoriano quem tem dos Açores uma visão de conjunto, quem valoriza os Açores todos, como presente, como futuro. Quem só celebra a sua ilha, que se apresente como sendo da sua ilha e fique por aí. Ser açoriano é outra coisa. Quem criou e publicou Os Açores sabia bem disso. Ainda é um exemplo que merece ser honrado.

Nuno Costa Santos *

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