Diário dos Açores

Na Festa de Água de Pau

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   Dizem que “quem conta um conto acrescenta um ponto”, e têm toda a razão. Nas oralidades, principalmente.
   Angela Furtado Brum, no seu livro “Açores – Lendas e outras histórias”, conta-nos que a afamada porca de Água de Pau, que paria duas vezes por ano, e que pertencia a um casal que morava na Rua da Boavista, quando fugiu de casa levou consigo os seus filhotes. Mais tarde, ao ser encontrada, estava  amamentado os marrãozinhos, no interior de uma cratera de um pico sobranceiro à freguesia. Como foi ali parar ninguém soube, mas alguém se atreveu a dizer que ela havia furado o pico. Daí nasceu a “gozação” do pessoal de fora, que ao passar na vila perguntava aos seus moradores se foi ali que a porca furou o pico, esperando respostas em palavras ruins, tanto sonoras como visuais.
   Mas esta versão da estória da porca no interior do pico não me agradou muito. Conheço outras, e a que mais gosto foi criada por volta de 1990, entre uma conversa de amigos.
   Jeremias Resendes vivia em Fall River com Água de Pau no coração. Defendia a sua terra de berço e não ficava ofendido se falássemos na bendita porca. Para ele, em nenhuma parte do mundo se haveria de encontrar criatura suína que se pudesse comparar àquele animal controverso, que levou o nome da vila aos quatro cantos da ilha e arredores. Até mais do que isso. Porque segundo afirmou Roberto Medeiros numa das suas crónicas sobre uma família de Água de Pau, esta estória da porca chegou a ser contada no Brasil. Mas fiquemos por aqui, respeitando o espaço do jornal e a paciência dos leitores, com um pequeno desvio referencial ao meu bom amigo Jeremias, que segundo ele, corria-lhe nas veias sangue ribeiragrandense pelo lado materno. Era precisamente por causa disso que nos dávamos muito bem, e as estórias de ambos os lados eram ouvidas com respeito e dignidade.
   Veio para a América bem novo, e o desejo de voltar à Ilha nunca lhe saiu da cabeça. Porém, manteve-se firme na terra estrangeira por quatro décadas, trabalhando mais do que necessitava. Poupando quase exageradamente conseguiu arrecadar pouco mais de duas centenas de milhares de dólares, para que, com a chegada da reforma se pudesse mudar definitivamente para Portugal.
   A reforma chegou, e Jeremias foi a São Miguel, a ver se comprava uma casa na vila de Água de Pau.
   Antes dos seus pés se calejarem em solo micaelense recebeu a notícia de que sua mulher fora internada no hospital, muito doente, e teve de regressar com urgência a Fall River. Conclusão da estória: porque tinha dinheiro foi-lhe negado apoio financeiro, e por isso as suas economias desapareceram em menos de um ano. Como se isso não bastasse, a mulher também se foi, e ficou o pobre do Jeremias sem dinheiro e sem mulher. Por isso a todos aconselhava o gozo da vida, porque nunca se sabe o que vem a seguir.
   O Jeremias visitava-me frequentemente, na loja maçónica da Bedford Street. E numa daquelas visitas, com a animada presença do Gil Mendonça, de Vila Franca, começou uma guerra de disparates em triângulo: serrotes acima, fusos abaixo, porcas e picos para um lado e para o outro.
   Vila Franca defendia o uso dos serrotes, porque sem eles não se podia cortar os cornos do vizinho; o gajo da Ribeira Grande orgulhava-se do seu fuso, porque sem ele não podia fiar; e a porca de Água de Pau foi mais do que louvada, porque Jeremias dizia que em parte nenhuma havia porcas como aquela. Depois, lembrou-se de ir buscar para a guerra de palavras as festas da Senhora dos Anjos, que atraíam à sua vila gente de toda a parte, no dia 15 de Agosto; e virando-se para o gajo da Ribeira Grande, apontando-lhe o dedo, lembrou-lhe dos vendedores de rebuçados e de outras guloseimas, que iam da Ribeira Grande para a festa de Água de Pau.
   Pois, claro! A porca furou o pico porque queria ir para a Ribeira Grande, consolar-se a comer rebuçados, torrões, e todas as outras guloseimas!
   Nisto, pondo tréguas à guerra, entra Gil Mendonça na conversa, a dizer que aqueles também iam vender rebuçados a Vila Franca, por ocasião do Senhor da Pedra, e de outras festas, e aquelas coisas boas regalava a alma.
   O que foi muito interessante, no meio de tudo isto, foi o Jeremias lembrar-se de alguns nomes dos vendedores de rebuçados. Falou-nos de um Cristiano, de um Faial e de outro que agora não me lembro. Se não estamos em erro, adiantamos em afirmar que aqueles três apelidos eram de pessoas criadas ou residentes nas imediações do Largo de Santo André, na Ribeira Grande.
   Por exemplo, um dos “Cristinanos”, o sr. José, ainda nos nossos dias vende rebuçados, amendoim, favas e tremoço nas nossas festas, em São Miguel. Foi visto nas Furnas, há três semanas, na festa da freguesia e concedeu uma entrevista para o jornal Público, cuja reportagem foi publicada na edição de 2 de agosto, sendo o texto da autoria de Rui Pedro Paiva e fotografias de Rui Soares. A dita reportagem deu que falar, e andou pelas redes sociais como uma perfeita homenagem a um homem que se tornou um “icon” da Ribeira Grande. Além disso, há cerca de um mês também foi visto e fotografado na feira quinhentista da Ribeira Grande vendendo os seus galinhos, vestido a rigor, com os seus lindos 86 anos de idade.
   “Cristianos”, cremos ser alcunha. Porque apelido de família, sabemos de antemão que é Rego. Um caso confirmado pelo nosso bom amigo Fernando Rego, que é da nossa geração, e que connosco compartilhou muitas aventuras na juventude, e veio para a América no mesmo ano em cá pusemos os pés.
   O Fernando, que é sobrinho do sr. José Cristiano, é filho de Manuel Valério do Rego (11-24-1923 / 05-10-1993), mais conhecido por Manuel Cristiano, que se tornou uma figura típica da Ribeira Grande por causa de uma fotografia, que em boa hora foi tirada, e que tem sido usada em diversas publicações relacionadas com artesanato açoriano, na qual ele se apresenta como vendedor ambulante de trempes e peneiras, e até mesmo tripas para se fazer chouriço.
   Conheci perfeitamente o sr. Manuel, e o retrato que guardo dele mostra-me ser um homem de respeito, e respeitado por todos. De varapau aos ombros, do qual pendiam os artigos para venda, muitos e muitos quilómetros os seus pés percorreram por toda a ilha. Não só quando vendia tripas, trempes e peneiras, mas também quando transportava os docinhos e salgadinhos para as festas. A festa da Senhora dos Anjos, em Água de Pau, era muito promissora. “É para lá que vou”, dizia Manuel Cristiano, que em paz descanse.
   Este tipo de negócio estava enraizado nestas famílias que o praticavam. Pelo menos, sabe-se que assim foi no caso dos “Cristianos”, e teria sido assim também dos “Faiais”, e de outros, em pelo menos duas ou três gerações.
   No folclore micaelense, na segunda metade dos anos quarenta do século XX, surge na Ribeira Grande um “Pézinho da Vila”, nos moldes daquele que conhecemos, mas totalmente recheado de tópicos relacionados com a Ribeira Grande e sua gente, cuja autoria foi atribuída ao Prior Evaristo Carreiro Gouveia, ensaiado e cantado pelo seu grupo de rapazes. Ao que parece, infelizmente, ninguém teve o cuidado de guardar a letra da canção, que um dos seus pupilos me disse que era longa. Mas segundo a tradição oral, as sextilhas que se seguem fazem parte dela, e só por si descrevem uma jornada dos vendedores de rebuçados da Ribeira Grande, na Vila de Água de Pau, na qual a tal bendita porca tinha de ser lembrada.
   Para todos, umas boas festas de Nossa Senhora dos Anjos, e haja saúde!

Eh, barato, barato!…

Caramelos, rebuçados,
Os galinhos encarnados,
Enfiados num pauzinho!
Há de todos os sabores
E os torrões de várias cores,
Que é de lamber o focinho.

Na festa d’Água de Pau
O vinho não era mau,
O pobre parecia rico.
Diz-me lá, tia Maria
Se foi nesta freguesia
Que a porca furou o pico.

A velha atirou-se à lata,
Foi tamanha a zaragata
Que parecia o fim do mundo.
Caramelos aos mergulhos,
Os galinhos davam pulos
E a lata ficou sem fundo.

No dia do arraial,
Eu fui lá mais o Faial,
Com a carga parecida.
Eu levava a lata cheia,
O Faial a cesta meia,
Eh, barato! - começa a lida!

Os foguetes pelo ar,
Toca a música a tocar,
Os rapazes num berreiro.
Na cesta cai um bombão,
Vai tudo pró meio do chão,
Rebuçados e dinheiro!…

Caramelos, rebuçados,
Os galinhos encarnados,
Enfiados num pauzinho!
Há de todos os sabores
E os torrões de várias cores,
Que é de lamber o focinho.

Eh, barato, barato!…

Alfredo da Ponte, nos EUA *

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