Diário dos Açores

“Oh pá, desaparece”

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Saúde Pública e a Saúde do público, semana a semana (20):

A Ciência da Semana: a importância da 2ª opinião

Mikkael A. Sekeres (chefe de hematologia do “Sylvester Comprehensive Cancer Center”, da Universidade de Miami) escreveu no “THE WALL STREET JOURNAL”, exortando os doentes a pedirem 2ª opinião. “Diagnósticos errados são frequentes, especialmente em formas raras das doenças”, salienta. O Dr. Sekeres conta a história de um paciente em pânico, que ele atendeu: com 60 anos, fora à urgência, porque se sentia cansado e perdia peso. As análises mostraram que tinha anemia e outras alterações. Foi internado para efectuar transfusão; fez biópsia da medula óssea, para determinar a causa das alterações. O relatório da biópsia revelou “cancro no sangue”; o médico do hospital disse-lhe que precisava consultar um especialista. Um dos melhores conselhos a dar a um doente, em caso de dúvida.
O Dr. Sekeres viu o relatório. Algo não batia certo. Repetiu a biópsia, e pediu exames adicionais. Fazer um diagnóstico de cancro pode ser complicado, em cancros incomuns. A leucemia mielóide aguda, 1% de todos os novos diagnósticos de cancro, atinge 4 em cada 100.000 pessoas, nos EUA, por ano. O cancro da mama é responsável por 15% dos novos diagnósticos de cancro, e atinge 130 em cada 100.000 mulheres, nos EUA, por ano. Um oncologista vê muito mais pessoas com cancro da mama do que com leucemia, assim como o anatomopatologista (que analisa a biópsia do tumor), escreve o Dr. Sekeres.
Com que frequência os erros de diagnóstico  acontecem? O Dr. Sekeres lidera um estudo do “Instituto Nacional do Coração, Pulmão e Sangue” e pelo “Instituto Nacional do Cancro”, no qual se recolheram informações clínicas e amostras de medula óssea de 2.000 pessoas, em 140 centros oncológicos, nos EUA. Compararam-se os diagnósticos nos centros oncológicos locais com os de anatomopatologistas especializados, e reviram-se as mesmas amostras de medula óssea. Os resultados foram surpreendentes. Anatomopatologistas especializados concordaram com os diagnósticos dos médicos locais 80% das vezes; ou seja, 1 em cada 5 pacientes pode ter sido informado de que tinha cancro quando não tinha, que tinha um cancro diferente daquele que cresceu na sua medula óssea, ou que estava livre de cancro quando não estava. E descobriu-se algo ainda mais perturbador: 7% dos pacientes com diagnóstico errado receberam o tratamento errado.
Tal aconteceu com o doente do Dr. Sekeres. A 2a biópsia, avaliada por outros anatomopatologistas, era normal. Vitaminas corrigiram as alterações. Taxas semelhantes de diagnóstico incorrecto foram descritas no cancro da mama, no melanoma e no pulmão. Os diagnósticos de cancro devem ser confirmados por especialistas. E, deve haver 2a. opinião nos diagnósticos e tratamentos a seguir. “As consequências de errar, numa situação tão grave quanto o cancro, podem ser devastadoras”, conclui o Dr. Sekeres.

Os dados para análise, desta semana: uso obrigatório de máscara nos serviços de saúde, de Nova Iorque

Em comunicado de 23.08.2023 torna-se público “o uso obrigatório de máscara nas instalações da UHS, “United Health Services”, em Nova York, em todas as áreas clínicas do UHS Wilson Medical Center, UHS Binghamton General Hospital, UHS Chenango Memorial Hospital e UHS Delaware Valley Hospital, bem como nos locais de cuidados primários e especializados”. “A nova política entra imediatamente em vigor, para todos os pacientes, visitantes, funcionários, equipas clínicas, voluntários, estudantes e fornecedores. As máscaras são necessárias em todos os espaços da enfermagem e nas salas de conferências dentro dos departamentos clínicos, incluindo áreas onde os pacientes se registam, esperam, transportam ou recebem testes e cuidados, ou onde se possam encontrar, como (…) corredores, escadas, elevadores, pontes pedestres e bares e refeitórios (com excepção de quando se come ou bebe). (…) Máscaras gratuitas estão disponíveis nos pontos de entrada das instalações da UHS.(…)”
Efectivamente parece que por lá, nos EUA, “todos são Hospitais do UHS”. Estão cientes do fim último da sua existência. A questão que se coloca é sempre a mesma: porque é que tem de morrer “inutilmente” gente, fruto do aumento exponencial de casos, para se fazer o que é correcto?

A homenagem da semana: a quem interessa a destruição do Serviço Nacional (e regional) de Saúde?  

Um estranho caso açoriano, este em que a direita social defende corajosamente o Serviço Público de Saúde, face a uma certa esquerda liberal. João Maurício Brás, o maior pensador sobre estes tempos, que vivemos, em obras como “O Atraso Português - Modo de Ser ou Modo de Estar?” (Editora Guerra & Paz, 05-2022), “Os Democratas que Destruíram a Democracia” (Opera Omnia, 01-2020) ou “O Mundo às Avessas” (Opera Omnia, 03-2018), tem retratado Portugal como ninguém. Só ele poderia explicar bem esta realidade…
Em Portugal, até 1946 a prestação de cuidados de saúde era a clínica privada; os hospitais regionais e sub-regionais estavam entregues à gestão das Misericórdias, pois o Estado tinha uma função supletiva. Em 1946, com a Lei nº 2011 de 2 de Abril, estabelece-se a organização dos serviços prestadores de cuidados de saúde (Hospitais das Misericórdias, Estatais-gerais e especializados, Serviços Médico-Sociais, Serviços de Saúde Pública, Serviços Privados), num padrão de organização dos serviços de saúde regionalizados, com hierarquia técnica. Em 1963 com o “Estatuto de Saúde e Assistência”, o Estado passa a intervir activamente na Saúde Pública. A Reforma do Sistema de Saúde e da Assistência (“Legislação Gonçalves Ferreira”, Decreto-Lei nº 413/71 e Decreto nº 414/71) cria “Centros de Saúde”, reconhecendo o direito à saúde como um “direito de personalidade”. Em 1976, o “Despacho Arnault”, abre o acesso aos postos de Previdência Social (da Segurança Social) a todos os cidadãos, independentemente da sua capacidade contributiva. Fica estabelecido que no SNS, financiado pelo Estado, os cidadãos usufruem do direito à saúde, universal, geral e gratuito, independentemente das suas capacidades económicas (art. 64º CRP).
Numa linha totalmente oposta aos últimos 80 anos da História de Portugal deparamo-nos com isto: “Serviço de Nefrologia defende centro privado de hemodiálise”, (Açoriano Oriental, 28.10.2015). Se incrédulo com o título, veja-se o corpo da notícia: “O Serviço de Nefrologia e Hemodiálise do HDES defende a criação de um centro de hemodiálise privado em São Miguel para servir os doentes com insuficiência renal crónica nos Açores. Aquela unidade de saúde assegura aquele tratamento nas suas instalações a 66 doentes, sendo que um centro privado de hemodiálise precisaria de pelo menos 60 pacientes para ser viável.” Tudo prontinho…?
Em nome do serviço público, propriedade do contribuinte, o diretor de serviço dizia ainda: “O público devia deixar de tratar os doentes crónicos e passá-los para o privado”, pois “com a abertura de um centro privado de hemodiálise em São Miguel, os encargos do HDES nesta área reduziriam, porque o serviço deixaria de estar aberto 16 horas para passar a funcionar apenas num só turno, o da urgência, acarretando menores custos com médicos e enfermeiros”. E ao privado, quem pagaria? Hoje todos nós, amanhã o doente…? Como funciona o plafond de qualquer seguro de saúde, por exemplo…?
A prova que faltava sobre a importância de um serviço de saúde público, forte e independente, veio com a última Pandemia. Todos se recordam como ficaram os serviços de saúde, quando a pandemia começou. Quem acorreu à população. Quem impediu o colapso social. A privatização (selvagem) de serviços de saúde é muito preocupante…
Naquele caso, por exemplo, o que não faltam são terrenos na posse do Estado, nas proximidades das unidades de saúde, para se poder aproveitar todo o saber instalado, criando estruturas maiores, garantindo a acessibilidade e sustentabilidade pública, nas próximas 2 décadas.
Tem de ficar claro que ocupar um cargo numa empresa pública, sem concurso público, para o qual se foi nomeado repetidamente, por gestões por sua vez nomeadas politicamente por governos anteriores, ou auferir considerável remuneração pela actividade que se exerce, não confere a ninguém Estatuto que permita ameaçar, seja onde seja, sem motivo algum, de forma ostensiva e pública, quem quer que seja. Qualquer funcionário do Estado, subordinado e/ou chefia, rege-se por um código de conduta. “Os funcionários regem-se segundo critérios de honestidade pessoal e de integridade de carácter. [...] encontram-se ao serviço exclusivo da comunidade e dos cidadãos, prevalecendo sempre o interesse público sobre os interesses particulares ou de grupo”, aí podemos ler.
Amigo dizia, há pouco tempo, que “urge reflectir sobre o que se passa para haver quem se julgue no direito de ameaçar - em grupo - colegas, no seu local de trabalho, ou ameaçar agentes da polícia que exercem as suas funções, ou ameaçar a privacidade de cidadãos, vasculhando processos clínicos”. Foquei-me nesta palavra: ameaçar. Mais dizia que “urge reflectir sobre a forma como os cidadãos se devem proteger, para que o exercício de funções públicas não possa servir para fins, que em tudo contribuem para o fim do serviço público de saúde.”
Em Sociedade regemo-nos por Códigos de Conduta e por juramentos sagrados (como o de Hipócrates). Excluímo-nos de conflitos de interesses e da mistura de ideologia com interesse pessoal. Votamo-nos ao silêncio quando não conhecemos o mínimo, como seja na gestão pública. O insulto fácil e vil, apesar de parecer ser “moda”, não é argumento. Muito menos o insulto dito e escrito como ameaça, mandando alguém “desaparecer”. Num Estado de Direito, democrático, qualquer ameaça deve ser levada a sério.

Mário Freitas*

*Médico  consultor (graduado) em Saúde Pública, com a competência médica de Gestão de Unidades de Saúde

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