Diário dos Açores

“Errar é humano, continuar no erro é diabólico”

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Saúde Pública e a Saúde do público, semana a semana (21):

A Ciência da Semana: “Errar é humano, continuar no erro é diabólico.” [Santo Agostinho]

Estima-se que quase 20 milhões de pessoas já tenham morrido de COVID-19, em todo o mundo; muitos milhões são actualmente infectadas, todos os dias. No número de 22.12.2022 da JAMA Oncology, Lee e colegas mostraram que as pessoas com cancro são especialmente vulneráveis à infecção por SARS-CoV-2, e à hospitalização por COVID-19. Doentes com cancro do sangue, ou em estágio avançado ou a receberem terapêutica sistémica apresentaram menor resposta de anticorpos à vacina, tornando-os mais vulneráveis. Com o seu estudo, Lee e colegas mostraram, pela 1a. vez, que a resposta de anticorpos à vacina está associada à infecção por SARS-CoV-2 e à hospitalização por COVID-19, numa população de doentes em risco. Doentes com cancro tiveram 47 vezes menor probabilidade de desenvolver uma resposta detectável de anticorpos à vacina, do que os pacientes controlo. Graças a este estudo percebeu-se que doentes com baixos títulos de anticorpos anti-S devem aumentar as precauções contra a COVID-19. Estes doentes podem beneficiar de doses adicionais de vacina, de profilaxia e tratamento precoce.
Esta investigação desafia os políticos e os dirigentes das instituições de saúde a considerarem soluções criativas de apoio, em pandemia, aos doentes oncológicos, especialmente vulneráveis. O médico e antropólogo médico Paul Farmer, MD, PhD, lembra-nos que, quando enfrentamos problemas novos e onerosos, os sistemas muitas vezes respondem com “falhas de imaginação”. Ora, Lee e colegas realçam que “os testes de anticorpos são apenas uma parte de uma estratégia mais ampla, que inclui esforços colectivos, como a ventilação, filtração e uso de máscara”. Numa estratégia mais abrangente, delinearam um conjunto prático de 10 dicas que os sistemas de saúde devem considerar, no apoio às necessidades dos mais vulneráveis, em pandemia. Estas dicas são centradas no doente, imaginativas e inspiradoras. Programas de apoio aos mais vulneráveis na pandemia devem incorporar elementos dos 10 componentes seguintes:
1. Psicoeducação básica. Informar sobre como o vírus se espalha, principalmente pelo ar, em espaços interiores mal ventilados, e descrever a mitigação a vários níveis.
2. Aconselhamento e acesso à vacina. Fornecer materiais educativos sobre a vacina. Aconselhar os doentes acerca das vacinas e reforços, e oferecê-las o mais perto possível do cidadão.
3. Testes de anticorpos e profilaxia.
4. Apoiar o uso de máscaras. Ajudar os doentes a usar correctamente máscaras de alta qualidade (N95, KN95, KF94, FFP3).
5. Teste de COVID-19 e tratamento precoce. Educar os doentes sobre como ter acesso e usar testes rápidos de antigénio e testes PCR. Orientar sobre como proceder se o teste for positivo.
6. Educação sobre a qualidade do ar interior. A melhoria da qualidade do ar interior, através da ventilação e filtração, pode remover aerossóis carregados de vírus, reduzindo o risco de COVID-19. Os doentes podem beneficiar da compra de filtros HEPA, para uso doméstico.
7. Educação sobre transmissão em casa. Ensinar aos doentes que é possível reduzir a transmissão em casa, quando alguém tem teste positivo.
8. Avaliação e tratamento da condição pós-COVID-19 (COVID longa).
9. Existirem recursos locais com uma “atitude prudente”, face à COVID-19.
10. Suporte na resolução de problemas.
Iniciativas comunitárias direccionadas aos números 4 e 6 podem angariar contributos substanciais. As empresas e os organismos filantrópicos podem aproveitar para apoiar os doentes, que lidam duplamente com o cancro e a pandemia. Além destas dicas, centradas nos doentes, as mensagens de saúde pública são cruciais para transmitir que os doentes com certos tipos de cancro permanecem em alto risco, apesar do sentimento público de que “a pandemia acabou”.
O caminho para a imunidade permanece complexo e variável. As reinfecções aumentam o risco para a saúde. Novas vacinas, e o momento e a combinação dos tipos de vacinas, podem reduzir a vulnerabilidade. Na dúvida adoptem-se precauções universais.

Os dados para análise, desta semana: uma sociedade civicamente activa

Urge lançar programas para ajudar pessoas com cancro a evitar infecções por COVID19, baseados no modelo proposto no JAMA Oncology. Particularmente centrados nas dicas 1, 4, 5, 6 e 7.
À medida que os hospitais abandonam as “precauções COVID”, muitas vezes aumentando a disseminação nosocomial (deste e de muitos outros patogénios), existem caminhos alternativos, como desenvolver programas abrangentes para apoiar pessoas vulneráveis durante a pandemia. Coisas simples, como distribuir aos doentes com cancro, e aos seus familiares, máscaras de alta qualidade e bem ajustadas, ou os melhores Testes Rápidos do mercado. Cada família também deveria ter purificadores de ar.
Isto já se faz no Estado do Louisiana! Num momento em que muitas instituições de saúde estão a tornar a prestação dos cuidados de saúde menos segura. Estranha época esta em que os doentes são forçados a protestar, porque querem apenas ser atendidos de forma mais segura nos Hospitais.
As pessoas com cancro estão entre as que correm maior risco de contrair COVID, e merecem todo o apoio. Infelizmente, as taxas de COVID permanecem muito altas. E serão ainda maiores, nos próximos tempos. Este é um mundo muito perigoso para pessoas com cancro.

A homenagem da semana: memórias da Pólio (é História, não é medo)

O ensino à distância durante a epidemia de poliomielite, em 1937 em Chicago, foi necessário devido à ausência de cura para a poliomielite, e à sua elevada contagiosidade. Resultado disto, a abertura das escolas foi adiada e os alunos obrigados a permanecer em casa. Mais de 300.000 alunos, do 3o. ao 8o. ano, tiveram aulas através de transmissões de rádio. De acordo com David M. Oshinsky, professor de história da NYU:
“O público estava compreensivelmente assustado com a poliomielite. Não havia prevenção, nem cura. Todos estavam em risco, especialmente as crianças. Não havia nada que um pai pudesse fazer para proteger a sua família.”
“Eu cresci nesta época. Em cada Verão a poliomielite aparecia como a peste. Praias e piscinas fechavam. As crianças tinham de ficar longe de multidões, o que levou ao encerramento de cinemas, espaços de jogos e outros lugares semelhantes. A minha mãe fazia-nos um ‘teste de poliomielite’ todos os dias: conseguíamos tocar nos dedos dos pés e colocar o queixo no peito? Cada dor de estômago ou rigidez causava pânico. Era poliomielite? Lembro-me das fotos horríveis de crianças de muletas, em cadeiras de rodas e pulmões de ferro. E, ao voltar à escola, em Setembro, de ver as carteiras vazias onde se sentavam as crianças que não voltaram.”
 

Mário Freitas*

*Médico  consultor (graduado) em Saúde Pública, com a competência médica de Gestão de Unidades de Saúde

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