Diário dos Açores

A Humildade: Justiça perfeita

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Saúde Pública e a Saúde do público, semana a semana (22):

A Ciência da Semana: na Europa estamos a morrer mais novos
 
A Esperança de Vida (EdV) caíu mais de meio ano, desde o início da pandemia COVID19, na Alemanha. Segundo o “Instituto Federal de Investigação Populacional” (BiB), a EdV desceu pelo 3. ano consecutivo, em 2022, de 78,7 para 78,1 anos nos homens, e de 83,5 para 82,8 anos nas mulheres. Segundo o BiB, há diferenças entre a Alemanha Ocidental e a Oriental. Em 2021, na Turíngia, Saxónia, Saxónia-Anhalt e Brandemburgo, a EdV baixou significativamente para valores abaixo do nível pré-pandemia, afectada pelo aumento drástico na mortalidade, por COVID19. Já em 2022, aqueles 4 Estados registaram aumentos significativos na EdV, especialmente nos homens. A situação foi diferente na Alemanha Ocidental: a EdV desceu mais, entre 2021 e 2022. Segundo o BiB, isso deveu-se à propagação massiva da pandemia, em 2022.

Os dados para análise: e em São Miguel, o que aconteceu à mortalidade em 2022…?

Em Epidemiologia iniciamos muitas vezes a avaliação do Estado de Saúde de uma população pelas informações já recolhidas. As mortes, e as suas causas, registadas nos certificados de óbitos, contêm informações valiosas, como a idade, o sexo ou o local de residência. Mas, os dados provenientes das estatísticas de mortalidade podem ser influenciados por várias fontes de erros, como o inadequado preenchimento dos registos, ou a imprecisão na determinação da causa do óbito, especialmente em idosos, onde as taxas de autópsias são baixas.
Esta semana trago ao leitor um gráfico, que representa a mortalidade na Ilha de São Miguel, entre a 1a. Semana de 2014 e a 35a. Semana de 2023. Os dados foram recolhidos do Sistema SICO, e estão disponíveis publicamente. São valores absolutos de mortes, em cada semana, não distinguindo quaisquer características individuais (idade, sexo…). Para facilitar a análise sombreei a amarelo as semanas de Inverno (onde a mortalidade, sobretudo em idosos, é maior); a linha vermelha representa a tendência. Façamos uma análise grosseira, a este gráfico, destacando as semanas com mais de 30 óbitos.
Em 2014 constatamos 4 “picos”, sendo o maior no Inverno; os outros 3 são no Verão e Outono. 2015 apresenta valores de mortalidade menores. 2016 começa com um “pico”, que se destaca. Os Invernos 2016/17 e 2018/19 apresentam “picos de mortalidade” relevantes; 2019 apresentou 3 “picos”, apesar de na 2a metade do ano se encontrar (“anormalmente”) abaixo da tendência. Chegamos aos anos pandémicos. Continuemos a nossa análise, realço grosseira. A Pandemia, declarada na semana 10 de 2020, é precedida em Fevereiro por 1 semana em que constatamos um “pico de mortalidade”; há 1 outro, mais prolongado, ao longo de várias semanas de Abril e Maio, em 2020. O que aconteceu aqui? Que características sociodemográficas tinham estes cidadãos, e quais as suas causas de morte? Sabe-se…?
O Inverno 2020/21 apresenta vários “picos”, com intervalos de várias semanas entre eles. 2021 nos Açores e na metrópole têm pouco em comum. E, neste gráfico, também vemos isso, se sobrepusermos a mortalidade na metrópole. Os Açores foram um oásis, no panorama nacional. Já 2022 é um ano diferente: desde o início do ano assiste-se a um mesmo nível de mortalidade, sustentado entre os 30 e 35 óbitos semanais, ao longo dos primeiros 3 meses do ano, seguido de um “pico” significativo em Maio/Junho, e ainda valores de destaque em Agosto, e em Outubro.
 
O que se passou em 2022, na mortalidade, em São Miguel?  De que morreram essas pessoas…? Que idade tinham? Onde viviam…? Que doenças tinham…? Quando tiveram COVID19…? Sobrepondo este gráfico com o gráfico da incidência de infecção COVID19 constata-se que existem “picos de mortalidade” algumas semanas depois de picos de infecção. Há uma relação entre estas 2 constatações, ou é um mero acaso…?
Em Setembro de 2022, a então Secretaria Regional da Saúde (SRSD) informava que “os dados relativos a mortalidade, em 2021 e 2022” estavam “a ser recolhidos e tratados, (…) para fins de avaliação de prevalências e tendências”, incluindo esta avaliação no “trabalho a ser desenvolvido para o Plano Regional de Saúde e para o debate aberto que está a ser promovido no âmbito do Fórum Saúde 2030.”, colocando assim uma actividade corrente em Saúde Pública na “dependência” de uma outra, de planeamento, a cargo de uma entidade externa. Destacava a SRSD que “na região, temos uma tendência de envelhecimento da população superior à média nacional. Entre 2011 e 2021 (…) a taxa de mortalidade aumentou 10,1%.” Realçava a retoma de actividade nos serviços de saúde na Região, com mais consultas, mais exames, mais cirurgias, e “menos cerca de 2.000 açorianos em lista de espera, do que há 2 anos”, sendo a “locomotiva” desse aumento de assistência à população, em 2021 e 2022, o HDES. Concluía que “a avaliação do número e causas de óbitos não é matéria que possa merecer uma avaliação imediata e superficial, mas matéria sensível e complexa que exige o tratamento e a avaliação que está a ser desenvolvida”. Passou tempo suficiente para responder às perguntas que acima coloquei, e que são um Bê-A-BÁ da Saúde Pública. Situações como esta não devem, não podem, ser analisadas no período de 1 ano, depois de acontecerem. Não podem. Têm de ser detectadas, e analisadas, em tempo útil, de forma a perceber o que se passa, e a corrigir-se, se tal for possível. O rumo de um navio tem de ser monitorizado a todo o momento, para que o rumo seja certo e seguro. Não em intervalos de meses, ou anos.

A homenagem da semana: à Humildade

É antiga, tanto quanto a existência de sociedades humanas, a tentação de algum Poder em controlar a Verdade, sobretudo a Verdade científica. Tal tem sido evidente em sociedades autocráticas, onde o Poder determina “o que é”, e “o que não é”. “Não há gripe!”. Acabou, não há. Seja Gripe A, B, C ou D. “Não há fome!”, e pronto, não há, como magistralmente foi retratado em “Doutor Jivago”, na versão cinematográfica do romance do escritor russo Boris Pasternak, concluído em 1956, nesta passagem:
Jivago: [fala com o comissário local do Partido comunista, depois de examinar um velho doente] “Não é tifo. É outra doença que não temos em Moscovo ... fome.”
O Poder comunista tinha determinado que não havia fome em Moscovo. E o médico, Jivago, como o poderia negar…?
É de Antero de Quental, que partiu num outro 11 de Setembro, a frase: “A justiça perfeita para com os outros chama-se caridade; a justiça perfeita para com nós mesmos chama-se humildade.” [Em Vila do Conde, 20.01.1887]
Humildade. O Poder não tem de saber aquilo para o que não tem preparação, nem formação. Ninguém lhe pode exigir tal (só na verborreia das redes sociais há insanos que exigem tudo a quem governa). Mas, tem a obrigação, porque para isso foi eleito, de governar o seu povo da melhor forma possível, para isso “ouvindo com humildade” aqueles que sabem e alertam… e depois, com mais ou menos autoridade, deve decidir, sempre focado no que é melhor para o povo.
Se na “Medicina do dia-a-dia” a iatrogenia, o erro, afecta e causa dano a um doente de cada vez, em Saúde Pública ou em Gestão de Saúde o erro causa dano a centenas, a milhares de pessoas, de cada vez. E, assim sendo, a regra mantém-se: “em primeiro lugar que as tuas decisões não causem dano”. Nem que para isso se tenha de ser duplamente cuidadoso. Ou, duplamente humilde, perante a dimensão do incerto.
 

Mário Freitas*

*Médico  consultor (graduado) em Saúde Pública, com a competência médica de Gestão de Unidades de Saúde

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