Diário dos Açores

“Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve”

Previous Article Revista Nova Águia, Revista de Cultura para o Século XX

Saúde Pública e a Saúde do público, semana a semana (23):

A Ciência da Semana: “mortes com COVID19” ?

Nos Estados Unidos, as infecções por fungos custam 6,7 mil milhões de dólares (2018) e causam mais de 7.000 mortes (2021), por ano. A infecção por COVID-19 é um factor de risco para infecções fúngicas. Os dados dos EUA (pormenores aqui: https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/29/7/22-1771_article) mostram que as mortes por infecções fúngicas aumentaram durante a pandemia COVID-19. Em 2019–2021, foram identificadas 59.212 hospitalizações fúngicas. As taxas de hospitalização por fungos (por 10.000) aumentaram de 22,3 (2019) para 25,0 (2020) e 26,8 (2021); uma variação média anual de 8,5%. Em comparação com as hospitalizações de doentes com infecções fúngicas não associadas à COVID-19, as associadas à COVID-19 tiveram internamentos hospitalares mais longos (21 dias vs. 9 dias), com maior necessidade de Cuidados Intensivos  (70,0% vs. 35,5%) e com mais mortes hospitalares (48,5% vs. 12,3%). O documento deixa claro que não se trata apenas de “mortes com COVID19”: as infecções fúngicas associadas à Covid foram 4 vezes mais letais! 
À medida que a pandemia COVID-19 evolui, e para aumentar a preparação para futuros surtos de doenças infecciosas, é necessária uma vigilância abrangente da Saúde Pública, para caracterizar a Epidemiologia das doenças e orientar esforços, e assim conseguir prevenir doenças e mortes. Não nos cansemos de avisar…

Os dados para análise: a queda para o abismo?
O turbilhão de acontecimentos no sector da Saúde dos Açores, nas últimas 2 semanas, levaram-me a recuperar uma entrevista a Manuel Delgado, Professor Auxiliar da Escola Nacional de Saúde Pública para as áreas “Políticas de Saúde” e “Gestão de Serviços de Saúde”, de 28 de Maio passado, onde ele aponta os principais desafios que o SNS enfrenta, e os que irá enfrentar no futuro. Nessa entrevista, Manuel Delgado afirma que as corporações “têm muito poder” e que isso cria dificuldades, até “um estado psicológico nos governos.” Defende a domiciliação de cuidados, perante os números: em 2010 houve 0,8% de consultas presenciais no domicílio, e em 2019 apenas 0,95%. Frisa a importância de “introduzir uma componente de racionalização na atividade das organizações de saúde (…). No sector privado há muitos gestores intermédios e de topo que não fazem medicina, porque o objetivo é que saibam de gestão (…). Todos os modelos de incentivo – os horários de trabalho, as progressões e as remunerações (…) têm uma base muito interna, muito fechada, com base nos interesses dos profissionais. Não há gestão, portanto, não há grande racionalidade e o pior é que não há uma visão do utilizador, uma visão do cliente, daquele que consome os cuidados de saúde”. 
Vai mais longe, quando diz “fiz um apanhado das consultas realizadas em cuidados de saúde primários (…): houve menos consultas em 2019 do que em 2010: cerca de 5,5%. Em 2010, tínhamos 5273 médicos de família; em 2021, tínhamos 8198. (…) Então, você baixa em 10 anos a atividade de consultas em 5,5%, e aumenta os médicos de família cerca de 66%? Como é que explica isto?”
Defende ser prioritário avançar “no registo e processo único do doente” que “deveria ser uma conectividade entre os médicos de família e os hospitalares.” (…) Se ficarmos bloqueados, sistematicamente, quando alguma transformação põe em causa pequenos interesses, comportamentos tradicionais, rotinas que nós achamos que devem ser quebradas, quando temos medo de intervir para quebrar rotinas e modificar o comportamento das pessoas, o Estado falha. E vinga a ideia de que é melhor não mexer porque isto pode criar problemas, as pessoas podem não gostar. (…) Reconhece que “o maior “calcanhar de Aquiles” na saúde seja a gestão das pessoas”, mas que “não é difícil criar um quadro de incentivos específicos para os objetivos que a política de saúde tem que ter. O principal objetivo que a política de saúde tem que ter é o acesso a cuidados de saúde (…)  O número de “médicos em hospitais aumentou, de 2000 para 2021, 37%. (…) o que é que eles estão a fazer, que atividades lhes estão adjudicadas e como é que nós podemos medir o desempenho destes profissionais”, já que o acesso não aumentou…? 
Manuel Delgado defende, para os médicos, uma remuneração com incentivos, “com um salário base” que “até podia ser o que já ganham (…) e depois podiam ganhar bastante mais em função dos incentivos que lhes fossem colocados em cima, dos desafios de produtividade. Os indicadores têm que ser criados de acordo com o que as pessoas mais precisam. Se as pessoas, por exemplo, têm consultas atrasadas 1 ano, a primeira tarefa de um hospital (…) é arranjar maneira de colmatar essas falhas. (…) As despesas das administrações públicas em saúde, entre 2000 e 2021, subiram 104%: gastávamos 8 mil milhões de euros em 2000, e 16,34 mil milhões em 2021. (…) Estas despesas têm sobretudo a ver com recursos humanos (é bom dizê-lo). Os Recursos humanos consomem, da despesa pública, 48 a 52%. Temos os medicamentos a seguir, que representam 23 ou 24% da despesa. (…)”
“Há um resvalar muito rápido para o precipício (…), a situação está a tornar-se cada vez mais dramática. E este dramatismo resulta de 2 fatores que concorrem em sentidos opostos. Se eu tiver um seguro ou um subsistema, eu tenho hoje, se quiser, uma consulta de Oftalmologia num hospital privado. Agora, se eu estiver apenas dependente do SNS, tenho essa consulta daqui a 1 ano. Ou seja, esta discrepância na resposta, para uma pessoa que tem ADSE e para uma pessoa que não tem mais nada a não ser o SNS, é insuportável e está a marcar, cada vez mais, o território político. (…) O que é que fazemos com o SNS… há dois caminhos. Um é pegar nele, estudá-lo bem, não ter medo de nada e propor as medidas estratégicas necessárias: desenvolver cuidados primários de proximidade, e incentivar a domiciliação de serviços; pôr os cidadãos com mais de 80 anos a receber o médico no domicílio sempre que quiserem e sempre que necessitarem; acabar com as urgências, através do internamento direto de muitas pessoas; permitir o acesso imediato de qualquer cidadão a um médico de família, a qualquer hora do dia ou da noite ou, pelo menos, durante as horas principais do dia. Isto é possível. (…) Mas agora vamos à alternativa. Vamos imaginar que o governo não consegue nada das corporações, e eles não querem fazer nada. O que o governo tem que fazer é começar a concessionar serviços à atividade privada. E essa concessão passa por contratos, uma contratualização rigorosa de metas que o Estado quer fazer cumprir. Chama os privados e diz-lhes: tenho este conjunto de utentes para vos dar, tenho este conjunto de especialidades em que as carências são estas e queremos contratualizar preço, mas queremos contratualizar também condições de resposta e recuperação de objetivos, que estão perdidos no tempo. O privado está disponível para isso? (…) isto faz-se através de uma política séria de contratualização com o privado, seja em regime privado/privado, seja em regime privado com fins sociais. (…)”. Séria. Sem interesses obscuros, que parecem cada vez mais claros.

A homenagem da semana: a anti-mesquinhez 
Há pouco tempo, analisando com amigo a informação que nos chega de diversos serviços, pagos com cada cêntimo esbulhado ao contribuinte, ocorreu-nos o quanto seria interessante perguntar aos actuais titulares de lugares de gestão 3 questões simples: conhece os principais indicadores referentes à sua instituição? Conhece a evolução dos mesmos, ao longo das 3 gestões que antecederam a sua? Qual a sua avaliação, pessoal, de cada gestão que a antecedeu?
A frase de “Alice no País das Maravilhas”, escrita por Lewis Carroll, “Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve…” assenta como uma luva a algumas gestões, que vamos acompanhando por aí, que de tão preocupadas com perseguições mesquinhas (saberá lá Deus porquê…), ainda não perceberam porque ocupam os lugares onde estão (e, não, não é para servir interesses familiares ou de grupos), transpondo para a opinião pública imagens de desnorte, e colocando os decisores políticos em situações constrangedoras, em certas comunicações públicas, fruto de dados cuja origem ninguém percebe. Na semana passada terminei este meu contributo recordando as autocracias, que tentam dominar a Verdade, regra geral calando as vozes não-alinhadas com o discurso oficial. O problema maior das autocracias está em não verem que as vozes não-alinhadas com o discurso oficial, estão alinhadas com a realidade dos factos.
 

Mário Freitas*

*Médico  consultor (graduado) em Saúde Pública, com a competência médica de Gestão de Unidades de Saúde

Share

Print

Theme picker