Diário dos Açores

Correia da Serra, um sábio entre os sábios

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Opinião

Um novo ciclo se iniciou em Portugal com a Revolução de 1820. Refletiu a corajosa determinação de substituir as conceções absolutistas, por estruturas políticas, sociais e culturais que fundamentaram um novo regime em que todos podem ouvir a sua voz, desde que se possam concretizar as liberdades, direitos e garantias constitucionais. Houve o contributo decisivo dos que permaneciam no exílio, submetidos às contingências do ostracismo e da solidão; e de outros, dentro de Portugal, que se empenharam  na mesma luta, mas agindo com a reserva e a discrição impostas pelo sigilo.
José Correia da Serra, cujo segundo centenário da morte agora se completou tem, finalmente, comemorações nacionais em torno da sua vida agitada e da sua obra exemplar. Nasceu em Serpa, a 5 de junho de 1751 e faleceu nas Caldas da Rainha, a 11 de setembro de 1823, quando ali se recorria ao tratamento termal. Ali ficou sepultado, sem que lhe prestassem as devidas homenagens.
Um dos seus biógrafos, Augusto da Silva Carvalho (1861-1957), catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa reconstituiu o percurso de Correia da Serra, nas Memórias da Academia das Ciências (1948) divulgando fatos e documentos que permitiram ampliar as investigações. É o caso de  Michael Teague, em 1997, no texto de apresentação do catálogo dos manuscritos arquivados na Torre do Tombo, e que possibilitaram a retificação e o acréscimo de questões primordiais. O Prof Dr. José Luís Cardoso, presidente da Academia das Ciências. – que me alertou para esta circunstância – proferiu, no dia 15 de Setembro, no salão nobre da Academia das Ciências, uma comunicação  sobre As origens do programa científico de Correia da Serra. Trata-se de mais um contributo fundamental de José Luís Cardoso que já se ocupara do livro do Richard Beale Davis que revelou a correspondência com Jefferson e outros protagonistas da vida americana. Este livro, com uma introdução de José Luís Cardoso, foi traduzido com o patrocínio da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e editado, em 2013, pela Imprensa de Ciências Sociais.
A obra Cidadão do mundo: uma biografia científica do Abade Serra. (Porto Editora, 2006) escrita por Ana Simões, Maria Paula Diogo e Ana Carneiro abriu novas perspectivas de conhecimento e de análise crítica. Na reabertura do ano académico de 2023/ 2024, Maria Paula Diogo dissertou, na Academia das Ciências acerca da História, Botânica e Geologia na obra do Abade Correia da Serra. Recapitulou alguns aspetos já destacados numa obra que revisitou, exaustivamente: os biógrafos e biografias de Correia da Serra; a juventude em Itália; o regresso às origens; o refúgio em Londres; os amores em Paris; o período americano; e, por último, o reencontro com Portugal.
É de mencionar Ilídio do Amaral, autor de Estudos preliminares de inéditos juvenis de José Correia Serra. A propósito do Catalogue raisonné des voyageurs de ma bibliotheque (1769). (Edição Colibri, 2012) Coloca-nos  perante a evolução de um cientista internacional, como o atestam os depoimentos de vários sábios seus contemporâneos e as numerosas  instituições científicas que o acolheram. Todavia, Ilídio do Amaral não deixou de lembrar que, « após o triunfo da revolução liberal, retomou o lugar de Secretário da Academia, foi deputado às Cortes (1822-1823) e desempenhou altos cargos, na Maçonaria, no Grande Oriente Lusitano».
Numa retrospectiva sumária podemos aludir que José Correia da Serra  era filho de. Luís Dias Correia, médico formado na Universidade de Coimbra, que se radicou em Itália, a fim de escapar às garras da Inquisição. José Francisco Correia da Serra tinha apenas 6 anos. Em Roma licenciou-se em direito canónico e optou pela vida religiosa. Ficou a ser amigo de D. João Carlos de Bragança, Duque de Lafões, que conhecera o pai, na altura em que ambos frequentaram a Universidade de Coimbra. 
Já com o título abade Correia da Serra, regressou a Portugal. Possuía o total apoio do Duque de Lafões. Um ano depois, juntamente com D. João Carlos de Bragança fundaram a Real Academia das Ciências de Lisboa. Sucederam-se as perseguições movidas pelo Intendente Pina Manique. Abandonou o país para se fixar, alguns anos depois de exercer o cargo de secretário geral da Academia das Ciências. Esteve ao corrente da concessão de bolsas de estudos na Europa para jovens membros da Academia, tais como os brasileiros Manuel Ferreira da Câmara e José Bonifácio de Andrade e Silva, que impulsionaram a independência do Brasil. 
Envolvido em novos problemas políticos decidiu instalar-se no Reino Unido. Pelos seus altos méritos ingressou na Royal Society e na Sociedade Lineana de Londres. Operou-se, em 1801, uma mudança inesperada na política portuguesa: Rodrigo de Sousa Coutinho foi designado Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. Correia da Serra passou a ser secretário da representação diplomática portuguesa em Londres. Enquanto esteve em Paris, colaborou com os enciclopedistas, nomeadamente, com Antoine Laurent de Jussieu, Alexander Von Humboldt e Georges Cuvier. 
Mas, por ocasião da terceira invasão francesa em Portugal, terá sido instigado para subscrever um documento para justificara política napoleónica. Ao recusar, terminantemente, Correia da Serra, mais uma vez, viu-se obrigado a procurar o exílio político, no estado americano da Virgínia. Chegou, em 1812, a Washington, com cartas de recomendação, de individualidades francesas, com influência na política americana. Uma delas o Marquês de Lafayette. Filadélfia constituiu, porém, o seu espaço privilegiado. Foi logo admitido na American Philosophical Society. Verificou-se, de imediato, a amizade recíproca e a admiração mútua entre Correia da Serra e Thomas Jefferson. Em Monticello frequentou, com assiduidade, a residência palaciana da família Jefferson. 
Voltou a Portugal em 1820. Estava implantada a revolução liberal. Eleito deputado às Cortes participou na construção de um Portugal que apostava nos imperativos do presente e do futuro. Uma eleição que integrou açoreanos de várias ilhas: André da Ponte Quental, João Bento de Medeiros Mântua, Miguel João Borges de Medeiros Amorim e Manuel José de Arriaga Brun da Silveira, Manuel Inácio Martins Pamplona e Roberto de Mesquita Pimentel. Os historiadores Ernesto do Canto (1831-1900), Eugenio do Canto (1836-1915) e Teofilo Braga (1843-1924) não ignoram a dimensão do percurso de Correia da Serra. Nem os botânicos de expressão regional como Carlos Machado (1828-1901) e Bruno Tavares Carreiro (1857-1911). Nem muito menos botânicos célebres, nascidos nos Açores, como Rui Teles Palhinha (1871-1957), Matilde Bensaude (1890-1969)  e Aurelio Quintanilha(1892-1987), qualquer deles com obra científica de projeção nacional e internacional.
Na  sessão efetuada na Academia das Ciências, além das intervenções que anotamos, José Alberto Silva e Fernando Figueiredo, apresentaram uma comunicação a propósito dos Ensaios para a História da Academia das Ciências. As finalidades estatutárias definidas por Correia da Serra ficaram, logo no principio, sintetizadas na legenda: Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria. Ou seja, na tradução portuguesa: Se não for útil o que fazemos, a glória é vã. Decorridos mais de dois séculos perdura o objetivo de Correia da Serra de unir o que está disperso, ao circunscrever a ciência e, de um modo geral, a cultura, ao serviço integral do aperfeiçoamento humano

António Valdemar *

*Jornalista, carteira profissional numero UM; sócio efetivo 
da Academia das Ciências

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