Diário dos Açores

O descarrilhamento da reforma da autonomia

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Nos últimos dias temos – mais uma vez – analisado o muito badalado projeto de reforma da autonomia que de reforma, desta vez, é uma tristeza. E é surpreendente: com tanta experiência de relatórios sobre reformas – eis que em vez de se pautar por traduzir trabalho digno de registo, continua-se a fazer experiências políticas a ver se pega como foi na revisão do Estatuto em 2009 que o então Presidente da República tentou impedir atentados ao Estado e à unidade nacional e à Região Autónoma , como os então Primeiro-Ministro, José Sócrates, e Presidente do Governo Regional, Carlos César, tentaram e afirmando o Presidente da República que levantou algumas questões (entretanto efetiva e naturalmente chumbadas pelo Tribunal Constitucional), mas que ficaram por resolver outras (como a irreversibilidade da autonomia). A Região dos Açores, com a convicção inteiramente injustificada de que o Estado é centralista e com uma segunda convicção inteiramente estupidificante de que propostas chocantes provocam o Estado a aceitar coisas menores e, por fim, com uma convicção criminosa de que na política se pode e deve fazer experiências legislativas (como aquela da gestão partilhada, uma lei regional que custou mais de um milhão de euros e de nada serviu, evidentemente) – a Região, como se dizia assim fortemente contenciosa e independentista, continua em devaneio. “De tanto, como dizia outro, querer aprofundar a autonomia, criou-se um buraco” e que nós deveríamos antes dizer de tanto querer aprofundar sem saber de onde se vem, onde se está e para onde se quer ir, mostramos ao mundo que somos ilhéus de espírito e mostramos aos insulares que para a política tem mais interesse o choque político inócuo do que o choque político de desenvolvimento.
Hoje vamos discutir três questões, a gestão partilhada, a reserva expressa e os tratados internacionais. A proposta de gestão partilhada resume-se a uma insignificância: limita-se a melhorar o texto concetual no seu ponto textual. O mais importante era apontar, em norma transitória, que a matéria será objeto ou de lei especial num determinado prazo e com indicação de finalidades concretas, ou no mesmo sentido através de alteração do Estatuto Político. É extraordinário como a Região não sabe fazer: a gestão partilhada já existe desde 1976; mas só foi verbalizada no texto do Estatuto dos Açores na revisão de 2009; depois estupidificada na Região numa lei inócua e entretanto expurgada com naturalidade. E agora, com esse historial, de remeter para uma lei (como a Lei de Finanças das Regiões Autónomas), ou mesmo para o seu Estatuto Político – limita-se a somar mais palavreado.
A reserva expressa, isto é, propõe-se que a competência legislativa dos órgãos de soberania sejam apenas as matérias expressas na Constituição. Essa ideia é impraticável. Por motivos políticos: o país é um Estado e não um Estado federal; é certo que o Estado tem elementos federais, porque as regiões autónomas têm poder legislativo, nomeadamente. Espanha já tem algo parecido, mas o modelo é diferente: de um lado, o parlamento é bicameral com uma câmara eleita por deputados das comunidades autonómicas; e de outro lado, todo o país está dividido em comunidades autonómicas a maioria das quais nacionalidades; e, mesmo assim, quando existem dúvidas o Estado tem sempre razão porque conta mais o todo do que a parte. Por motivos jurídicos: como é que o Estado iria dizer na Constituição que a Assembleia da República só tem os poderes legislativos que estão escritos? Improvável ponto é dizer pouco. O Estado, que é unitário, tem uma assembleia nacional; e, como tal, tem sempre que ter poder para resolver tudo, incluindo na própria Constituição. Esta proposta, portanto, é extemporânea e desnecessária à autonomia.
Sobre os acordos e tratados internacionais: em vez de a Região se concentrar em desenvolver por lei, com o Estado, um regime de dividendos para os insulares; eis que se limita a repetir o que a Constituição já possui, mas impõe – salvo seja! – que sejam suspensas as negociações e que não sejam aprovados os acordos e tratados internacionais que a Região Autónoma ainda não tenha dado concordância expressa. Já não existem matérias exclusivas das ilhas, para além das que já foram resolvidas, o “contrato de colónia” na Madeira e o contrato “Chãos de melhoras” nos Açores. Podia admitir-se um prazo que fosse razoável; mas não, quer-se apenas provocar.
Não interessa aos governos regionais a reforma da autonomia – isso é dolorosamente evidente enquanto sufocamos em problemas estruturais básicos que podíamos resolver com todo o dinheiro a que temos acesso.

Arnaldo Ourique *

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