Diário dos Açores

Canto da Maia, «belíssimo escultor»

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Centenário de João Afonso, VIII

A Isabel Soares de Albergaria

Ao João Afonso jornalista cultural não podia escapar a figura de Ernesto Canto da Maia, expoente máximo da escultura art-déco portuguesa cuja longa residência em Paris precedeu em décadas a do surrealista António Dacosta, angrense como ele, João, e seu muito especial amigo.
Reconhecer que os Açores deram a Portugal estes dois artistas de alto gabarito será hoje (mas, bem entendido, apenas nos círculos que estimam estas coisas...) quase uma trivialidade, mas durante muito tempo não foi de todo assim: o próprio regresso tardio destes dois filhos pródigos — e considere-se aqui também o de Nemésio, feito com Corsário das Ilhas de 19561 — ocorreu em em contextos, circunstâncias e modos muito diferenciados mas sempre com algum melindre, digamos assim. A triste história da longa campanha pelo Monumento a Antero de Quental em Ponta Delgada deixou na imprensa da época — para quem a queira revisitar — a evidência de que o excepcional privilégio de uma tal autoria não foi assumido pelas autoridades locais e pelos subscritores chamados a viabilizá-lo, levando à constrangida reformulação da obra; e a primeira retrospectiva de Canto da Maia em Ponta Delgada teve lugar no Museu Carlos Machado em 1976, quando o artista tinha...86 anos — e voltara à «ilha verde» haviam decorridos... 23!2 Quanto a Dacosta, efusivamente redescoberto por gerações novas de pintores e críticos de arte nos anos 80, os seus quadros mais «açorianos», como o delicado Festa e o violento Serenata Açoriana, sempre pertenceram e pertencem agora a coleccionadores ou museu sextra-arquipélago, e até o famoso epíteto «pintor europeu das ilhas» foi crismado numa revista da capital, Variante, e por pretexto directo de uma exposição e de um prémio atribuído por uma instituição nacional, o SPN de António Ferro.
Os dois breves artigos de João Afonso que se trazem a público são, certamente, o testemunho duma admiração estética partilhada por muitos, mas comprovam sobretudo a sua convicção de que a obra dum artista açoriano deve poder ser vista por açorianos na sua própria terra. O jornalista em reportagem não perdeu, por isso, a oportunidade — é certo que privilegiadíssima, e a vários títulos — de influenciar a oferta da escultura do navegador João Vaz Côrte-Real ao Museu de Angra do Heroísmo,3 em 1956, sendo uma das primeiras incorporações — senão mesmo a primeira incorporação — em museus regionais de obras do escultor micaelense. A revelação do fortuito conhecimento pessoal ocorrido em pleno mar será uma curiosidade memorável, e gentil, mas a confirmação de que o artista então com 67 anos, que viveu por décadas em três grandes capitais europeias, nunca visitara Angra do Heroísmo e a Ilha Terceira, não pode deixar de ser vista como o certificado perturbador, não diria de um bairrismo insano — veneno a que, como «estrangeirado», Canto da Maia seria imune —, mas de uma muito precária integração do arquipélago como um todo. Não deve surpreender. O próprio João Afonso, nascido em 1923, só em 1964, e no contexto duma excursão náutica de Verão, visitaria a Ilha das Flores, terra natal de sua mãe...
Vasco Rosa

O escultor Canto da Maia
Desde que há uns bons pares de anos vimos no catálogo geral da Exposição Internacional das Artes Decorativas,4 realizada em Paris vai para 30 anos, a reprodução da escultura que publicamos nesta página [uma das versões de La Femme au serpent (1923)], nunca mais perdemos a intenção de fazer referência ao respectivo autor, o açoriano Canto da Maia, que então era conhecido por Ernesto do Canto, seu nome próprio e nome de seu avô, essa figura extraordinária ligada à investigação histórica do nosso arquipélago, principalmente através do monumental Arquivo dos Açores.  
Essa escultura, entre tantas, causara-nos grande impressão apesar de o volumoso catálogo vir bem fornecido. Adiando sucessivamente a merecida referência, não desistimos dela, dando agora, já documentados, notícia da obra de Canto da Maia (Ernesto do Canto de Faria e Maia, nascido em Ponta Delgada em 1890).
Se alguém que, na crítica de arte, atinge as culminâncias dum Segard [Achille Segard, 1872-1936], pôde dizer o que lemos acerca de Canto da Maia é porque o artista em foco transpôs os umbrais da glória e passou a ser um valor reconhecido universalmente. Com efeito, Ségard exprimiu-se assim: «Feliz Canto da Maia, que mereceu a sua felicidade! É, presentemente [1935], um dos melhores escultores da França, e não tem sequer que esperar alguns anos para que os seus Açores natais e o seu Portugal sempre amado reconheçam que é um grande homem e lhe confiem, talvez, a execução de qualquer grande obra».
De então a esta data, Canto da Maia não mais deixou de ser o escultor consagrado nos meios europeus, tido em Portugal como insigne artista. E se foi sucessivamente trabalhando para as exposições de Paris, Nova Iorque e do Mundo Português (Lisboa, 1940), o certo é que só em 1943 o seu nome apareceu a grande altura com a exposição que realizou no Secretariado [de Propaganda Nacional], onde juntou, em documentário extenso e variado, a obra de que é autor, «rica de aspectos representativos da sua interessantíssima personalidade artística, com algumas dezenas dos seus mais belos relevos e esculturas, numa série impressionante de figuras históricas, de bustos, temas religiosos, grupos e outras composições», no dizer suficientemente elucidativo de Luís Reis-Santos.
A sua característica essencial é a simplicidade de formas, marcadamente hieráticas e pendendo para a estilização, num equilíbrio de proporções e num acabamento perfeito. São exemplo as suas Tragédia e Comédia, A Virgem com o Menino, busto de Madame Rabette d’Ivoire, Hino de Amor, Beijo, Família, Cristo na Cruz, busto de senhora, etc. Em 1937, obteve o Grand Prix de Paris aquele que fora discípulo de Julio Antonio, Bourdelle, e James Vibert. 

Os artistas açorianos no estrangeiro: Ernesto do Canto (Canto da Maia)
Há bastantes anos já que venho falando de Canto da Maia, esse belíssimo escultor que, vivendo em Paris, tem realizado para a Arte e para o nome do seu país e dos Açores uma obra de imperecível Beleza.
Um dia descobri que, em certo álbum francês, estava reproduzida uma escultura de suavíssima expressão cujo autor era um tal «Do Canto». Disse ao saudoso Dr. Luís Ribeiro que me impressionara bastante essa figura e logo me contou ele o muito que sabia de Canto da Maia. Nunca mais perdi a tentação de juntar ao que aprendera, mais alguns conhecimentos. As minhas lides de imprensa levaram-me, em 1948, à Exposição de Obras Públicas5 e lá encontrei um outro trabalho do artista. Tratava-se da estátua de Côrte-Real, a que hoje se encontra no nosso Museu. Entrevistando, por essa altura, o Senhor Engenheiro Frederico Ulrich, e augurando que essa estátua seria bem recebida em Angra, logo o Ministro me lembrou que propusesse o assunto neste jornal. E assim foi. Mais tarde, passados oito anos, ela para cá veio, graças ao Dr. Baptista de Lima, que, para o efeito, recebeu o melhor apoio do Governador do Distrito, Senhor Engenheiro José Luís Abecassis.
Nesta página foram entretanto reproduzidas algumas gravuras de obras do Escultor, como a que hoje se torna a publicar, com o artigo que Robert Rey inseriu, há vinte e tantos anos, na revista francesa L’Art et les Artistes.
Penso ser, agora, oportuno prestar a minha homenagem a Canto da Maia. Conheci-o, pessoalmente, há poucas semanas. Andava eu passeando a bordo do navio em que seguia para Lisboa e ao debruçar-me na amurada para ver o mar, a duas pessoas que conversavam ouvi dizer: «Afinal, quem será o tal rapaz da Terceira?»
Pela sequência da conversa, percebi que o Poeta Côrtes-Rodrigues lhes falara do rapaz da Terceira que eu sou. A breve termo, senti que devia apresentar-me. Reconheci que estava em frente de Canto da Maia. E pouco depois soube que a senhora com quem o Artista conversava era a Condessa de Caminha.6 
Formou-se um círculo de interesses comuns.7 Um pouco de Música. Um tanto das correntes estéticas modernas em escultura e pintura. Um nada de Poesia, com Juan Ramón Jiménez pontificando.  Um pouco mais dos romancistas franceses actuais — Camus e a incrível Sagan.8 
Ceio que ganhei imenso, naqueles arrastados dias a bordo do vagaroso barco. Canto da Maia mostrou-se, com naturalidade e singeleza, a maior simpatia, a mais encantadora modéstia, a mais insinuante lição.
Num momento e o mundo fica na ponta do conhecimento imediato. Pela minha parte jamais falara ou escrevera de Canto da Maia com vista a uma amizade pessoal. Prezo a que ele me ofereceu e recordo os anos que passaram e dos quais dou nota para fixar esta homenagem que, por enquanto, não pode ser mais do que simples impressão de carácter superficial. Outros, em Angra, devem, um dia, saber agradecer a Canto da Maia a obra de sua autoria que veio parar ao nosso Museu. Ele confessou que, no próximo ano, ao voltar aos Açores, se deslocará a esta cidade para ver como está a estátua, e para conhecer este velho burgo de que tanto tem ouvido falar.

João Afonso
Diário Insular, Angra do Heroísmo,9 de Fevereiro de 1954,
pp. 2, 4, e 16 de Janeiro de 1958, pp. 2-3.

1Tanto quanto sei, à época a recepção crítica açoriana deste livro foi inexistente.
 2Da mesma forma, só em 2009 algumas cartas cedidas em 2000 ao Instituto Cultural de Ponta Delgada foram publicadas na revista Insulana por Isabel Soares de Albergaria e Madalena San-Bento, embora sejam essenciais para perceber os primeiros passos do escultor em Paris e não só.
 3A escultura foi encomendada a Canto da Maia em 1945, para um projecto junto à Torre de Belém que depois não se concretizou. Em 1948 o Ministério do Ultramar mandou fazer um exemplar em gesso platinado com vista à exposição referida no texto. Pode ser vista na igreja de Nossa Senhora da Guia, em Angra, junto à sepultura do navegador, falecido em 1496 nesta cidade, de que foi capitão-donatário.
 4Importa saber que esta obra é de extrema raridade em bibliotecas portuguesas.
 5A 5 de Junho refere-se-lhe como «a monumental exposição que me fez deslocar à capital». No dia 20, o jornal reproduz um artigo de Fernando de Pamplona na última página: «Presença da estatuária na Exposição de Obras Públicas», com reproduções de obras de Francisco Franco, Leopoldo de Almeida, e Álvaro de Brée — mas não de Canto da Maia, todavia referido pelas suas «imagens soberbas no rasgo das atitudes, na flama que ilumina as máscaras e no poder de sugestão que tudo envolve e anima».
6Trata-se de Virgínia Olímpia de Amaral Peixoto (1900-81), pianista e professora de piano do Conservatório Nacional, de Lisboa, casada em 1934 com Lobo de Sousa Coutinho, conde de Caminha, com residência e comércio na Ribeira Grande desde a década de 1930. Informação gentilmente prestada por Pedro Pascoal de Melo, a quem muito agradeço.
7O poeta espanhol, a viver nos EUA desde 1936, recebera dois anos antes o Nobel da Literatura.
8A parisiense Françoise Sagan publicou com imenso sucesso Bonjour Tristesse em 1954, livro que escreveu com apenas 18 anos.

Vasco Rosa

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