Diário dos Açores

Sobre o Estudo do Transporte Marítimo de Mercadorias

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Foi com muito agrado e com alguma perplexidade que li o conteúdo das páginas 4 e 5 do Diário Insular (DI) de 26 de setembro último, que divulgou o estudo sobre o transporte marítimo de mercadorias, contratado pelo Governo Regional dos Açores à empresa VCDuarte. Agrado pelo facto de o tema ter sido tornado público e perplexidade por, no final da leitura, ter ficado com a noção de que se perdeu mais uma oportunidade para uma análise consequente de um dos temas mais determinantes para uma economia insular e arquipelágica como é a dos Açores.
O documento (que não li por estar reservado a uma comissão de “sábios”), aborda sobretudo, de acordo com o DI, questões de âmbito de itinerários e de otimização, apresentando vários cenários, e definindo como de maior potencial um modelo baseado em dois hubs e toques semanais em todas as ilhas. Tal modelo garantiria também uma otimização de meios, gerando poupanças de 2 a 3 milhões de euros anuais. Ora, tal poupança é absolutamente residual face ao volume de negócios conjunto dos armadores de cabotagem. Adicionalmente, nada é reproduzido no artigo a respeito de um aspeto fulcral no âmbito das restrições que o Estado impõe aos armadores no âmbito do presente regime, que é a questão dos fretes iguais para todas as ilhas.
Convirá, desde logo, referir que há uma vasta extensão de áreas diretamente relacionadas com este tema da otimização de recursos, aplicáveis muito para além de, apenas, o transporte marítimo. De facto, a possibilidade de obtenção de maiores níveis de eficiência cobre áreas como os portos, os transportes terrestres, a logística a montante e a jusante (ou seja, a nível do território continental e no próprio arquipélago dos Açores), para além do transporte marítimo propriamente dito, que é apenas uma componente de todo o sistema de transporte. Julgo que apenas de passagem este aspeto terá sido referido no referido estudo (conforme depreendo do sexto parágrafo do artigo do DI).
A literatura é vasta cobrindo todas esta áreas. Por exemplo, a nível portuário, o “insuspeito” Banco Mundial produziu documentação sobre como os países devem proceder na promoção de mudanças de governação a nível portuário, o que permitirá obter maiores níveis de eficiência. Tendo em conta que, nos Açores, vigora um modelo baseado no modelo service port, um modelo considerado na atualidade anacrónico e apenas em vigor em países mais pobres das Caraíbas e do Pacífico, para além de países sob regimes comunistas, seria positivo também a abordagem deste tema.
Na Região, a tutela do setor é do Governo Regional dos Açores, mas, sobre este tópico não tem sido promovida qualquer abordagem, no sentido de os portos adotarem maiores níveis de operacionalidade e de baixarem os custos portuários, tema debatido frequentemente pelos armadores de cabotagem. Em sentido contrário, o próprio estudo da VCDuarte aborda a questão em termos que agudizam a complexidade do problema dos portos, ao colocar a possibilidade de a totalidade dos portos possuírem gruas para contentores de 40 pés, no âmbito do alargamento das operações de tráfego local. A este respeito ocorre-me perguntar se os autores do estudo têm a noção de quanto tempo leva a um transitário preencher com carga um contentor de 40 pés para a ilha das Flores, ou para a ilha Graciosa, por exemplo, em que os volumes de mercadorias importadas é relativamente diminuto.
Circunscrevamos a discussão ao tema do transporte marítimo. Neste contexto e em termos conceptuais, será de considerar três tipos distintos de abordagens: uma de âmbito estratégica, outra de âmbito tático e, por último, uma abordagem de teor operacional. Adicionalmente, haverá a considerar que existirão dois tipos de agentes envolvidos no processo do transporte marítimo: agentes privados e agentes públicos, sendo que cada um dos tipos de agentes possui um determinado perfil de ação. Será, pois, no âmbito de cada uma destas abordagens que dever-se-á começar por perceber o que diz respeito ao âmbito de ação de cada qual e delimitar as abordagens.
Exemplos de ações de âmbito estratégico incluem: tipo de tráfego e mercadorias a selecionar; desenho dos navios; sistema de transporte (hub&spoke, point to point); ou ainda rede de portos a servir.
Em termos de âmbito tático teremos: ajustamentos à composição da frota, em dimensão e tipologia de navios; ou horário das rotas e horário a praticar nas escalas dos portos para minimização de custos.
Já em termos operacionais, será de considerar como exemplos, as seguintes ações: ajustamentos na velocidade do navio por forma a escalar o porto no horário pretendido; descarga e carregamento do navio; ou ainda rota a praticar em função do estado do tempo.
Seria por aí que o estudo deveria ter começado, com uma matriz que definisse, com a máxima exatidão, o que cabe a cada um dos tipos de atores. Não me parece que tal perspetiva tenha sido considerada e definida no documento em apreço. Este é, parece-me, o erro de partida do documento. Trata-se de um erro conceptual que terá tornado todo o documento um mero exercício de relevância prática muito diminuta. Para além disto, envolve o tráfego local no problema, tornando-o ainda mais complexo e não explicitando como esse tráfego se interliga com o referente ao regime de cabotagem.
Decorre do referido acima que os problemas de otimização dizem sobretudo respeito aos operadores, que são agentes privados. Quanto ao Estado, terá um papel regulador, definindo os termos da prestação dos serviços (via obrigações de serviço público – OSP - ou contratos de serviço público – CSP -, conforme decorre do Regulamento Comunitário sobre a Cabotagem) e, posteriormente, auditando o sistema, a respeito do cumprimento por parte dos operadores de transporte das regras que impôs por via legislativa.
Nestes termos, o que cabe ao Estado não é tratar da otimização de percursos, nem de meios. Em vez disso, o Estado deverá estar concentrado de forma primordial em tópicos de âmbito estratégico e, em menor grau, em tópicos de índole tática. A este nível, e na esfera do nosso problema, está a definição, nos termos da legislação aplicável, de: um sistema liberalizado, ou um sistema de intervenção pública, através do estabelecimento de OSP, ou de CSP. No caso de estabelecimento de OSP, poderão existir, ou não, compensações financeiras. No nosso caso, o Estado Português, desde a entrada em vigor do Regulamento Comunitário, optou pela criação de um mercado com OSP e sem quaisquer contrapartidas financeiras aos operadores privados. Era sobre isto que o estudo deveria ter-se focado, numa análise que permitisse a balizagem do âmbito da intervenção estatal e da definição de obrigações de serviço público, e não questões de âmbito de otimização de rotas, tipicamente um problema que se enquadra na perspetiva do operador de transporte.
No final de contas, depreende-se que nada de profundamente inovador terá resultado do estudo da VCDuarte, uma vez que o problema com que os Açores se confrontam desde há cerca de 30 anos é um problema de âmbito logístico, não de âmbito exclusivamente associado ao transporte marítimo. Ou seja, a questão do transporte marítimo é apenas uma das faces do problema, e a opção de o escolher como a única face, é exatamente isso: uma opção. É como olhar o cubo mágico apenas por um dos lados. Em suma, cientes deveremos estar que optar por esquecer a complexidade dos problemas, é atirar para “os amanhãs que cantam” a implementação de quaisquer modelos futuros.

Luís Machado da Luz*
*Doutorado em Sistemas de Transportes pela Universidade de Coimbra, ao abrigo do Programa MIT Portugal

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