Diário dos Açores

A Cultura dos engomados

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Diário inconveniente

Este título pertence ao impagável Victor Rui Dores, que lhe roubei há doze anos, quando me associei a ele e a todos os desiludidos com uma certa política cultural comprada a vulso lá fora, ignorando a imensa riqueza criativa cá dentro, na nossa região.
Recupero-o agora (fugindo do circo político a sete pés) a propósito de um excelente artigo do dinâmico livreiro de Ponta Delgada, José Carlos Frias, proclamando um “Manifesto para a leitura”, com sete propostas muito acutilantes, a fim de se promover a leitura nos Açores, coisa praticamente perdida pelas gerações mais jovens, entretidas noutras plataformas pouco credíveis.
O sempre atento Vasco Rosa veio em apoio do manifesto, acrescentando que se deveria promover um profundo debate aberto sobre o tema, em nome de uma cultura que se vai desenvolvendo em todas as ilhas, mas com fraco apoio das entidades que têm essa dinamização à sua responsabilidade.
Os últimos três anos da coligação foram de uma miséria franciscana no sector da Cultura, secundando os anos anteriores que já não foram grande coisa.
Pior do que não promover a nossa cultura, é esta obsessão, quase patológica, de incensar e apoiar tudo o que vem de fora, em detrimento da criação artística e literária de autores locais.
Sobre isto, que já vem de longa data, limito-me a transcrever, sem mais comentários, o que escrevi em Agosto de 2011, como contributo solidário para com o José Carlos Frias e o Vasco Rosa, para a tal reflexão que se impõe:
“Esclareço que não sou contra – bem pelo contrário – o conhecimento universal, desde que em doses equilibradas e com selo de reconhecida qualidade, acompanhado do bom senso na coluna das despesas públicas.
   Mas o que se vê ultimamente é resmas de conferencistas, seminaristas, artistas, musicólogos, alguns importados a peso de ouro, enchendo-nos de banalidades e de maneirismos que, estou certo, a população não consegue enxergar.
Até se inventam ligações universais e geográficas estranhas – estou-me a lembrar de uma cultura de “istmos” ou lá o que isto se chama – para justificarem a vinda de gente que não nos diz nada.
Ponho-me a pensar se o “mainstream” da cultura açórica não andará em delírio criativo...
Onde está a promoção dos autores açorianos?
Onde estão as conferências e seminários sobre a criação literária açoriana?
Onde estão os fóruns e os “workshops” dedicados às obras açorianas?
Toda a nossa cultura erudita nos Açores foi sempre baseada na vida intelectual, isto é, no livro.
De repente, vêmo-nos rodeados de centros de artes contemporâneas, artes plásticas a rodos e música de terceira apanha.
E a literatura açoriana? E os nossos autores?
Este ano foi raro o mês em que não deram à estampa excelentes obras literárias de reconhecidos escritores, como Onésimo Almeida, Cristóvão de Aguiar, José Medeiros Ferreira, Urbano Bettencourt, Teixeira Dias, para citar apenas as obras mais recentes, sem que esta produção mereça uma política de promoção cá dentro e lá fora.
Não fosse o excelente trabalho de recensão de Vamberto Freitas – um dos maiores críticos literários da actualidade – e muitas das obras nem figuravam nas páginas da comunicação social.
Vamberto tem sido o incansável promotor da nossa criação literária, cá dentro e lá fora, substituindo quem deveria ter como principal incumbência a divulgação da nossa cultura, sobretudo nos mercados lusófonos de maior penetração.
Socorro-me aqui de umas declarações de David Mourão Ferreira e Maria de Lurdes Belchior, notáveis pensadores da cultura portuguesa, ambos Secretários de Estado da Cultura, que vieram à Universidade dos Açores, há trinta anos, ministrar dois cursos intensivos de Literatura Portuguesa aos 3º e 4º anos da universidade açoriana.
Interrogado sobre a promoção dos autores açorianos e a sua visibilidade no exterior, disse David Mourão Ferreira ao “Correio dos Açores”, em Julho de 1981: “No Continente é realmente possível darmo-nos conta de existir uma literatura especificamente açoriana, servida por autores que ninguém desconhece. Vitorino Nemésio, Natália Correia, Cristóvão de Aguiar, para citar alguns. Mas é um facto que os Açores, por si, pouco me parece fazerem para chamarem a atenção para si próprio, literariamente, pelo menos”.
Maria de Lurdes Belchior acrescenta: “E quer saber uma coisa? Quer saber que as universidades dos EUA muito mais fazem do que quaisquer outras – as portuguesas e a açoriana – no que diz respeito ao dar a saber das letras açorianas?”.
Três décadas depois continuamos na mesma, como se alguém pretendesse amordaçar o livro açoriano, em detrimento da importação de iniciativas “artísticas” que desmerecem a nossa cultura.É contra este amordaçar e contra esta cultura de rabanetes agora tão em voga que também me revolto.
Uma cultura de salão e de croquetes.
Uma cultura de opereta “barroca dos rendilhados rococós” - e volto às famosas tiradas do Victor Rui Dores - “a cultura pitoresca e picaresca da sabedoriazinha em notas de rodapé... A cultura choramingas e videirinha dos letrados de pichisbeque e dos manguinhas de alpaca frouxos de ideias... A cultura snob das damas decotadas e cocotes, que estudaram o decoro em colégios do Sagrado Coração de Maria e que servem chazinhos de caridade à hora das telenovelas... A cultura do caruncho caturra de académicos enfatuados (outros Basílios...) que ensinam com ar de antiqualha erudição... A cultura hipócrita, burguesa e pasteurizada da etiqueta social, dos botões de punho e dos colarinhos engomados (…) A cultura do despacho e do decreto-lei e a cultura do palavreadinho político”.
Ah grande Victor, como te percebo!”.

Osvaldo Cabral
osvaldo.cabral@diariodosacores.pt

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