Diário dos Açores

Perguntem aos alunos!

Previous Article Previous Article PS chumbou duas vezes a substituição do anel de fibra óptica interilhas
Next Article Tradicionais presépios da Lagoa em exposição nos EUA Tradicionais presépios da Lagoa em exposição nos EUA

Decorre o segundo ano letivo após a implementação dos manuais digitais nas escolas dos Açores. No final do ano letivo passado, a Direção Regional da Educação enviou, e muito bem, um inquérito para as escolas com o objetivo de se inteirar do grau de (in)satisfação dos professores pioneiros no projeto.
À comunicação social, mais tarde, veio a Secretária Regional da Educação declarar o sucesso dos seus resultados. Nenhum ponto de interrogação colocou, nem qualquer reserva foi esboçada sobre a avaliação do projeto. As afirmações suscitaram perplexidade entre os professores que se manifestaram nas redes sociais sobre a conclusão da tutela, já que muitos deram conta das suas dificuldades no uso do computador como única ferramenta de trabalho, uma vez que substitui o manual físico. De resto, pessoalmente, não conheço nenhum professor, nem nenhum encarregado de educação, já agora, que reconheça vantagens pedagógicas nesta medida.
Faltou, no entanto, perguntar aos primeiros interessados - os alunos - o que pensam sobre esta opção, que tanto afeta a sua vida presente como afetará o seu futuro.
Ninguém lhes perguntou nada e eles ressentiram-se disso mesmo. A mim, que quis saber a sua opinião, expressaram a sua insatisfação. Queriam ser ouvidos. Queriam ter dito que não gostam.
Os meus alunos de duas turmas do 9º ano, que estão sob experiência - sim, porque é de uma experiência que se trata, dado que não há suficientes evidências dos benefícios da sua aplicabilidade, muito pelo contrário - pelo segundo ano consecutivo não fazem um balanço positivo. O benefício mais referido pelos alunos é o alívio quanto ao peso que têm de transportar na mochila para a escola. De resto, são eles próprios que se acusam de se distraírem com facilidade “quando as aulas são chatas”, - dizem eles - já que têm ali à mão um mundo de distrações dentro do computador. Apontam o computador como um fator de desconcentração fácil, não gostam do método de trabalho que proporciona, pois é pouco ágil para tomar notas nas margens dos textos estudados, por exemplo, em Português, que é a disciplina que leciono. Às vezes, os computadores falham, não gravam as anotações, não atualizam, porque a net é insuficiente, a bateria descarrega e não há tomadas na sala de aula para todos, evidenciando-se ainda mais o contraste de uma medida descontextualizada face à antiguidade, às más condições materiais e aos fatores de desconforto de muitas escolas, como é o caso da nossa. Se, por azar, se esquecem do computador em casa, têm falta de material em todas as disciplinas naquele dia, apontam ainda, queixando-se de dores de cabeça ao fim do dia ou de cansaço da vista, dificuldades que gostariam de ver debatidas, mas que nunca foram. Só no período da pandemia, em que as aulas foram dadas à distância, é que a exposição aos ecrãs era prejudicial, de tal forma que os tempos de videoconferência foram reduzidos para metade, dando lugar às aulas síncronas e assíncronas. Quem explica agora esta contradição?
Uma aluna pediu a palavra para dizer:
 - Professora, eu não tinha computador, porque a minha família não podia comprar. Agora, tenho, porque a escola me “deu” um. Isto é muito bom, pois posso fazer trabalhos que antes não podia fazer. Mas, ainda assim, gostava de ter também o manual físico.
Isto dito por uma aluna de uma turma em que há um bom número de alunos que recusaram o computador, porque os pais assim o determinaram, optando por comprar o manual, sem qualquer apoio escolar.
- Excelente intervenção! - retorqui.
De facto, a sua intervenção suscitou uma discussão importante. O empréstimo dos computadores por parte da escola a todos os alunos, exceto aos que optam pelo manual, o que está incorreto, coloca toda a gente no mesmo patamar de acesso e em situação de igualdade. É uma ferramenta indispensável no mundo atual e, como tal, deve fazer parte do ensino nas escolas. No entanto, para muitos alunos, os manuais físicos constituíam igualmente os únicos livros disponíveis nas suas casas. Esta situação não é despicienda, de todo. Os manuais físicos eram uma iniciação ao contacto com os livros das mais variadas categorias. Permitia a proximidade, a intimidade com os livros, o prazer de folhear, de manusear um livro no despertar do gosto pela leitura.
Há, de facto, toda uma ligação sensorial que se perdeu nesta nova realidade. De tal forma se consciencializaram das perdas que os países mais adiantados nesta experiência dos manuais digitais já abandonaram esta via.
Os computadores têm de estar presentes na sala de aula – na mesma, um para cada aluno - mas como instrumento acessório, como recurso de aprendizagem entre outros, não como recurso fundamental.
Quando há estudos que atestam que a exposição excessiva aos ecrãs afeta a linguagem - já é largamente comprovável no fraco domínio de vocabulário dos nossos alunos - e, por conseguinte, na apreensão do mundo, no desenvolvimento do pensamento e da cognição, quando já se comprovou que afeta a memória e a concentração, instiga a agressividade e a falta de empatia, como podem os nossos governantes, de ânimo leve, pôr em causa o futuro de toda uma geração? Pelo menos, assumam que é uma experiência e, como tal, pode ser revertida antes que seja tarde. O Ministro da Educação já assentiu que poderia haver mudanças, embora só o tenha feito depois das notícias de que nos países do norte da Europa recuaram na medida.
Na China, produtora massiva de tecnologia de ponta, os jovens só estão autorizados a usar computadores ao fim de semana, porque pode estar comprometida a geração do futuro. Em Taiwan, considera-se abuso e maus-tratos colocar uma criança em frente a um ecrã.
Nas sociedades democráticas, fala-se em cidadania digital, mas nada está regulado. Ironicamente, os ecrãs passaram a ser o “manual único” das ditaduras no sistema de ensino. Para lá facilmente caminharemos se este método impositivo perdurar sem nos questionarmos. Os eventuais efeitos perversos que o mundo digital pode ter no cérebro humano e na perceção crítica do mundo já se pronunciam.
Perguntem aos alunos!...

Paula Cabral

Share

Print

Theme picker