Fragmentos vernianos:  O universo feminino
Lúcia Simas

Fragmentos vernianos: O universo feminino

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 Quando Verne publicou, com enorme êxito até na América “A volta ao mundo em 80 dias”, em 1889, apareceu a exploradora, Nellie Bly, jornalista que apostou dar a volta do mundo em menos tempo que o previsto por Verne. Com o apoio do New York World, a repórter conseguiu um périplo mundial de 72 dias. A jovem partiu dos Estados Unidos para Inglaterra, depois França - onde encontrou Júlio Verne, seguiu para Sri Lanka, continuando até ao Japão, para regressar ao país natal numa corrida desenfreada de costa a costa num comboio fretado pelo Jornal.
Ao longo dos 72 dias os americanos estavam em suspenso nesse concurso publicado no Jornal. Os leitores que acertassem no dia, hora e minuto exactos do regresso de Nellie a Nova Iorque, ganhavam como prémio uma viagem a Paris. Porém a jovem não seria ímpar. Em sentido contrário, ao redor do globo, a jornalista Elizabeth Bisland procurava feito idêntico ao serviço da revista Cosmopolitan. Verne cita a famosa exploradora Nellie Bly na obra “Claudius Bombarnac”.
Os casos das exploradoras fora muito frequentes. Paulina Barnett, que aparece em “O País das Peles” nomeada várias vezes pela “Sociedade Royal de Geografia”. As aventuras femininas revelam que têm grande cultura e dominam a geografia e uma formação científica que Verne demonstra nas suas heroínas, algumas mulheres reais a quem alterou o nome.
  Em “La Chasse au Meteore” Verne parece traçar um perfil do que considerava a esposa perfeita e estaria bem longe de Honorine. Flora Hudson é a boa mãe, sincera, sem se queixar dos trabalhos astronómicos do marido. Celine Guitton escreveu maliciosamente que Verne idealizara as qualidades que faltavam à esposa.
Arcadia Walker, rica e independente, é uma jovem aventureira americana. Casa com Seth Stanford e logo se divorcia 2 meses para no final o repudiar. Por vezes a mulher surge para simbolizar o remorso ou a vingança e então aparece como fantasma e assombra lugares e almas. São heroínas, no sentido da palavra pela forte determinação que se revela em Mathias Sandorf e Mme Bathory devido ao afecto ao filho Pierre enlouquece ao saber da sua morte.
Jules Verne inspirou-se para criar as suas personagens femininas nas aventureiras exploradoras. Uma dela foi Ida Pfeifer, que cita em “Le Pays des Fourrures”, e inspira-se nas exploradoras reais, que surgem no fim do século. Adèle Hommaire de Hell ou também Léonie d’Aunet cuja obra real Voyage d’une femme au Spitzberg veio a influenciar Verne em viagens e explorações, inspirou-se em “Un hivernage dans les glaces polares”.
Júlio Verne confessava que a Mãe o influenciouclaramente no gosto pelo mar e manteve uma forte proximidadeafectiva pela atenção que dava aos seus conselhos. Como confidente e amiga surgia nas várias ocasiões em que precisava desabafar. Nas suas cartas confessava os seus profundos desgostosos ao ser rejeitado pelas jovens que tentava conquistar mas que preferiam outros pretendentes.
 É fácil perceber como as suas heroínas estão relacionadas com as dolorosas experiências dos desenganos amorosos e até o rancor em que se transformou o afecto infantil que guardara à sua prima Carolina. Toda a vida manteve forte rancora Nantes. Os biógrafos não comentam o seu casamento com a viúva, Honorine que demonstrou grande pressa em casar-se. Na verdade nem esperaram pelo luto que tradicionalmente duraria alguns anos. Em poucos meses Verne já estava comprometido. O procedimento da viúva, Honorine, já com duas filhase com26 anos foi rápido em aceita-lo. O futuro cunhado tratou do contrato de casamento em Amiens em breves semanas e sem festividade.. O casal ficou unido toda a vida, mas Verne não primou pela fidelidade. Charles N. Martin refere diversos casos e aventuras amorosas.Honorine gostava muito de receber intelectuais no seu salão e de viajar com o marido e filhos.
O seu universo feminino engloba uma galeria de heroínas que ultrapassam qualquer arquétipo pela multiplicidade de caracteres e formas de análise. Em “Viagens Maravilhosas” são cerca de 150 as mulheres aventureiras e  quase sempre, dotadas de grande coragem e energia feroz sem nada ceder à vontade masculina. ”
Christian Porcq, um verniano universitário, declarava:  “ Essas mulheres são particularmente originais para a época por estarem presentes em romances de viagens, um género onde raramente aparecem.”
   Julien Gracq atribui às heroínas vernianas a coragem de tomar sob os seus ombros os labores que os homens abandonaram e realizam trabalhos de Hércules.
Temos exemplos de tenacidade das “Damas Garral” em “A Jangada” – obra singular pelos diálogos, comicidade, comigualdade das raças. A Jangada é  um madeiro de árvores gigantescas, percorre o Amazonas até Belém. As mulheres em “Miguel Strogoff”, são fortes lutadorasou com dedicação sem limites reveladas nacigana Sangarre, que atravessa a Rússia até à Sibéria ou Nadia Fédor ou Marfa Strogoff que nunca desistem da luta .
É impossível numerar-se as vezes que estas obras são adaptadas, quer a BD e ao cinema, televisão, ao teatro e assim continuam. Apesar de serem maioritariamente para adolescentes, surgiram leitores deslumbrados em qualquer época.
Em “L’Archipel en feu”, são duas mulheres que dominam a acção Andronika Starkos, mãe do bandido Starkos e Hadjine Elizundo, consideradas das figuras mais belas de toda a sua obra. Após gestos de extrema grandeza a morte de Andronika assemelha-se a uma personagem grega. Djemma em “L’Invasion de la mer” é uma mãe corajosa, infatigável que o filho, Hadjar descreve como “tão audaciosa como corajosa”. O intuito do romance de antecipação era criar um largo mar no meio do deserto africano, mas os Touaregues revoltam-se e entre eles a mulher é igual ao homem”. Na realidade, a África seria ainda um enigma total, terra mítica, lendária que fascinava Verne.
A loucura e a morte trágicas surgem nas figuras femininas, mais de cinco vezes.São o resultado de casamentos contrariadoscom fortes rancores aluindo às mulheres  que o desprezaram.Surge a loucura em Ellen Hodges no romance “Une ville flottante”, a jovem Nell, invisível guia os mineiros e só surge no final em “Les Indes noires”. Já Mistress Branican enlouquece porque o filho morre afogado e começa uma busca do marido desaparecido. A pesquisa vai até à Austrália com aparição de canibais, carnificinas dos ingleses e descrição de animais exóticos. A pretensão verniana seria homenagear Lady Franklin e todas as esposas que se consagraram na busca dos maridos desaparecidos em expedições.
Em “Le secret de Willem Storitz”, a formosa Myira Rodriche enlouquece e torna-se invisível devido ao líquido que o noivo preparou. Este vive com o seu retrato, num amor que os deuses oferecem aos seus heróis pois morrem jovens sem sofrer as desventuras da velhice.É  um exemplo de “mulher inacessível”(J.P Dekiss) que nunca aparece e todos desejam.
Em “La Maison à vapeur”, a ficção é uma máquina em forma de elefante enorme que viaja pela Índia e uma chama errante surge de noite apavorando os viajantes. Por fim o marido reconhece-a, mas Lady Morno enlouquecera Em “O Castelo dos Cárpatos ” todo o romance tem por fioa bela voz fantasmagórica da cantora, Stilla, já morta que, ora se ouve a sua voz, ou vislumbra-se a sua sombra, com o engenhoso uso de espelhos e electricidade, pouco conhecidos.
Christian Chelebourg refere-se a um “complexo  de Herminie “ pelosdotes de fadas que as figuras femininas possuem. No meio dessas mulheres surgem umas Irmãs religiosas, Madalena e Marta que dão um exemplo de rara abnegação e Verne reconhece a grandeza do cristianismo.
No que respeita ao divórcio com a personagem Arcadia Walher temos a tolerância com uma mulher independente que se casa se divorcia e abandona a frança pela América mostra-se tolerante enquanto a figura maternal é exaltada. Também surgem vultos femininos que assumem a expiação e responsabilidade moral dos seus familiares. A jovem Sarah, no conto Martin Paz, transgride todas as nacionalidades e diferentes sociedades com imensa coragem e vem a morrer ao lado do marido. “Dans La Famille Sans Nome” surge um pesado matriarcado num ambiente sombrio. Apesar de uma prole muito numerosa, Catherine acolhe P’tit Bonhomme e este recompensará a família Mac Carthy um pouco como as obras de Dickens.
A falta de densidade psicológica dos personagens é compensada pela constante curiosidade em seguir as mil aventuras num mundo fantástico em que o real se confunde com o imaginário. Jean Chesneaux quer ver o feminismo e o terceiro -mundismo avançando lado a lado nestas obras antecipadoras de tempos ainda hoje não atingidos.

 

Bibliografia consultada:
https://fr.wikipedia.org/wiki/Femmes_dans_l%27%C5%93uvre_de_J. Verne
https://www.dn.pt/ciencia/quando-a-ficcao-de-verne-foi-superada-nellie-bly-a-jornalista-que-volteou-o-mundo-em-72-dias-14185374.htmlDiário de Notícias 4-9-21.
https://www.britannica .com/biography /Jules-Verne 27-8-21
https://fr.wikipedia.org/wiki/Jules _Verne Style_et_structure_narrative
https://fr.wikipedia.org/wiki/Femmes en  Jules Verne
Marcetteau-Paul. “Jules Verne écrivain”. Nantes. Coiffard & Joca Seria. 2000
Martin, Charles-Noël, Édition Reencontre.Les œuvres de Jules Verne, 1969
Yann Etienne, Jules Verne, Voyage dans les mondes connus et inconnus : Jules Verne et ses fabuleuses machines à fictions,s/d.

 

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