Nos últimos anos tem vindo a repetir-se o falso drama sobre o Orçamento do Estado. O espectáculo sobe à cena durante o mês de Outubro, com os actores nos papéis já conhecidos, que declamam com apreciável monotonia e decrescente convicção.
Trata-se de conseguir que o Parlamento aprove, como exige a Constituição, a proposta de Orçamento apresentada pelo Governo. Este faz reuniões intermináveis para elaborar a dita proposta e finalmente entrega-a, numa pen - anteriormente em numerosos volumes - ao Presidente da Assembleia da República, já no fim do prazo ou mesmo num prolongamento, que obriga toda a equipa dos jornalistas parlamentares a ficar de vela pela noite dentro...
Segue-se a cena do generalizado repúdio das propostas governamentais pelos partidos da Oposição, enquanto o PS tece loas ao esforço heróico do Executivo para atender às mais variadas questões de urgente necessidade pública.
Acontece que alguns partidos estão umbilicalmente ligados à solução governativa em vigor e o Governo dá logo sinais de que vai negociar com eles a viabilização da proposta de Orçamento. Começam de imediato reuniões, que não levam a parte nenhuma. O suspense cresce nos Órgãos de Comunicação Social, onde inúmeras personalidades, algumas de todo até então irrelevantes e porventura desconhecidas, se dispõem a sentenciar sobre a matéria e a fazer os prognósticos mais disparatados.
É normalmente nessa altura que o Primeiro Ministro entra no palco e assume pessoalmente a condução das negociações. De repente o Orçamento revela imensas possibilidades de ampliação as despesas. Afinal o crescimento do PIB vai ser maior e portanto vai haver mais receitas. A logo chamada “folga orçamental” começa a ser preenchida com reivindicações a esmo formuladas pelos partidos da ex-geringonça, Bloco de Esquerda e PCP, mais o PAN e Deputados e Deputadas sem filiação partidária.
A poucos dias de se iniciar o debate na generalidade do Orçamento em sessão plenária da Assembleia da República nada é tido por garantido, a opinião publicada está ao rubro e entra em fase de crise política.
Este ano o Presidente da República resolveu, na sua inigualável imaginação analítica, dar um contributo para a acalmia das hostes pondo a correr que se o Orçamento não for aprovado dissolve o Parlamento e convoca eleições legislativas antecipadas. Foi um “frisson”!...
Claro que a ameaça de eleições antecipadas foi formulada para pressionar os parceiros do costume, BE e PCP, que acabam de sair de derrotas abundantes nas eleições autárquicas, a fim de os levar a não votarem contra o Orçamento; mas acabou por funcionar também como um elemento de pressão sobre o PS, que está no mesmo estado, depois de ter perdido as eleições em Lisboa, em Coimbra e noutras autarquias importantes. Daí que o Presidente Marcelo se tenha vindo congratular com as cedências já feitas pelo Governo, dando a entender que seria possível ir ainda mais longe nelas para apaziguar os ímpetos despesistas da extrema esquerda parlamentar.
Ora, o que consta do guião da peça é que, depois de terem dito do Orçamento proposto pelo Governo o que Maomé não disse do toucinho - se é que ainda se pode repetir este dito antigo... - há sempre algum partido e Membros do Parlamento avulsos disponíveis para, com voto favorável ou por abstenção, viabilizarem a aprovação do mesmo e o normal exercício financeiro do Estado no ano seguinte. E assim pode cair o pano, preparando-se, por detrás dele, o Governo para fazer do prometido o que quiser e cativar o resto, que as contas públicas são o que são e não se pode ir muito além do que permite Bruxelas, com os seus Semestres Europeus e outros mecanismos de controle.
Este ano o argumento do filme já tantas vezes visto vai ser mesmo repetido tal e qual até ao fim? Ou assistiremos à rejeição do Orçamento e à dissolução do Parlamento, com a consequente convocação de eleições gerais?
Jogando na manutenção do suspense até ao fim, BE e PCP dizem-se dispostos a prosseguir negociações sem limite de tempo. O Presidente da República, por seu turno, depois de ter dado sinais de hesitação, mantém sobre todos a espada de Dâmocles das eleições antecipadas.
Tudo pode acontecer, embora o mais razoável fosse a repetição do dejá vu... E afinal, que vão dar de novo as eleições? Na fase de grande perturbação em que se encontram vários outros partidos, com eleições internas a serem intensamente disputadas, o mais natural é que aumente a abstenção e o extremismo tire benefícios. O “berbicacho”, em tempos aludido pelo recandidato Marcelo, está em risco de se tornar numa profecia que se concretiza a si própria.
Por cá também há quem se esteja já aliviando nas redes sociais, segundo me dizem, com ameaças sobre a aprovação do Orçamento da Região Autónoma dos Açores para o próximo ano. Se acaso se antecipam as eleições, vai ser engraçado apurar que destino lhes dará o Povo.
(Por convicção pessoal, o Autor não respeita a assim chamado
Acordo Ortográfico.)