Fragmentos vernianos: O futuro Nemo
Lúcia Simas

Fragmentos vernianos: O futuro Nemo

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- Ah! Meu caro Hetzel, se eu falhar nesta obra, nunca me perdoarei! Jamais tive um assunto tão belo entre mãos.
Trava-se do projecto mais longo e reformulado de Verne. A sua veia inventiva voltava-se para a antecipação ecológica com calculadoras mecânicas comparáveis aos computadores e Internet. O engenho que tornava as pessoas invisíveis já surgia e hoje ainda não foi inventado.
A obra levou muito tempo na mente do escritor. ‘”As vinte mil léguas submarinas” e o capitão Nemo forjaram-se como o que de melhor o autor se orgulhava. Nemo seria sempre um enigma. Verne viveu com este manuscrito mais de dois anos a reescrever. Não queria transformar o capitão em abolicionista ou perseguidor pois lhe retiraria o mistério. Pensava que seria um herói cujo início e fim ficariam misteriosos. O desejo do editor, por mais lucro trouxesse, não seria já possível de rever. Emprestou a Nemo alguns traços do coronel Charras, antigo amigo de Henze e companheiro já falecido, mas ir além retirava-lhe o enigma.
O manuscrito principia com um monstro terrível aterrando os mares do Globo! Pierre Aronnax, um famosíssimo biólogo, levanta a hipótese de ser um narval diluviano. Os investigadores vão à sua captura mas naufragam e tornando-se presos num misterioso aparelho É o Náutilos! Nemo aparece e recusa libertá-los. É com ferocidade que declara:
- Descobristes um segredo que nenhum homem devia saber! (…) Ninguém devia saber da minha existência!
Cresce em Aronnax enorme curiosidade. Aquele homem, desaparecido da face da terra, sabe os segredos dos mares com o Náutilos, a sua espantosa “ cidade submarina.” Com os seus prisioneiros percorrem todos os mares numa volta às maravilhosas profundezas marítimas. Os leitores acabam por descobrir que Nemo vive devorado por um ódio total contra as nações malditas e opressorase usa “ a cidade submarina” como instrumento de vingança.
Atribuem as mais variadas especulações. Indecifrável personagem, sem pátria, oculta-se fora de qualquer civilização. Nemo defendia que os brancos europeus eram tão selvagens como os povos da Papuásia. A sua origem ficará sem solução. Hetzel queria que a sua última palavra fosse Liberdade e Verne, contrariado, silenciou-o. Nunca se saberá como morre.
   Nemo é a ciência em acção. A profissão de fé desse capitão, ao declarar o seu infinito amor pelo mar, também se aplica a Verne pela sua paixão pelas viagens oceânicas sem fim. Verne exclama contra a civilização:
Eis o opressor! Por sua culpa tudo o que Nemo amou desapareceu. Perdeu o que venerava, pátria seus pais, sua esposa, filhos Tudo!(…) O que odeia está em terra!
Aronnax, e dois companheiros conseguem escapar e embarcam numa chalupa para uma das ilhas Lofoten. Nunca se saberá o fim do Náutilos, possivelmente engolido por um tsunami.
O esboço deste romance data de 1865 com uma sugestão de George Sand que lera com  forte agrado “Cinco semanas em Balão”.  Primeiro, Jules Verne pensava em  intitular o romance  “Viagem  debaixo de Água” . A primeira alusão data de 1866, quando Verne terminava “Os filhos do Capitão Grant III, e em 1867, escrevia em desespero
“ Trabalho com determinação  após dois meses de abstinência a minha mente explode!”
Nemo não tem nenhuma relação com a Humanidade da qual se separou. Basta-lhe o mar sem necessitar da terra. É o mar que lhe forneça tudo o que precisa. Se os continentes desaparecerem num novo dilúvio viveria melhor que Noé na sua arca. Esta situação metafórica “absoluta” é o climax da obra.
  Terminou a escrita na sua “Vila Solidão” após fortes hesitações acerca maior impacto para o público. O editor elogia-o e apoia-o. Mas afasta-se  dos títulos sugeridos, nem mesmo a ideia de escrever uma continuação aproveitando uma ilha deserta sendo Nemo um abolicionista e  perseguidor dos negreiros. Verne recusa. Sabe que essa é a grande economia mundial que ninguém vence.
   Para escapar aos ódios, vinganças, futilidades e lutas da vida na terra, Nemo e seus amigos engenheiros inventam o Náutilos, como libertação total, maravilha tecnológica, uma aula maravilhosa de antecipação de Verne”.
      Não se sabe como acaba Náutilos nem Nemo que o editor desejava que fosse hindu pronunciasse a palavra: Liberdade. Verne recusou e calou-o . Tanto o Náutilos como Nemo desaparecem sem rasto.
    Ao conversar a bordo do submarino, com o engenheiro que capturou Nemo explicaria: - Ah ! Sabes que eu sou o navio de uma nação maldita. Não preciso das cores das bandeiras para te reconhecer, olha! E  apontou para a bandeira negra semelhante à que já colocara no Polo Sul.
- O mar é o vasto reservatório da Natureza! Foi pelo mar que o globo começou e quem sabe se não acabará lá? O mar não pertence aos déspotas! Ainda há combates à superfície com direitos iníquos, mas nas profundezas os direitos desaparecem. Ah! Senhor,vivei no seio dos mares! Só aqui há independência e não conheço Mestres! Aqui, eu sou livre
- Ah! O mar! O mar é tudo É apenas movimento e amor, é o infinito vivo. Sim! Amo o mar, pois é o todo! (…) É o movimento, o amor,  é oinfinito vivo.
   Atribuem-lhe reminiscências mitológicas que se reportam às viagens Homero, o nome Nemo, enigma que atrai os críticos sem nenhum consenso. “Ninguém” ( em latim) surge como um duplo do ardiloso Ulisses. Verne conhecia os clássicos. Ulisses diz-se chamar-se “Nemo” ou Ninguém) para fugir da caverna do Titã cego Polifemo.
D. João de Castro, em “Frei Luís de Sousa” de Almeida Garrett, também se denomina como “Ninguém” no intuito de salvar da desonra o casamento da esposa com o irmão terminando o “pathos” (sofrimento) O Náutilos antecipa o mais famoso submarino, totalmente eléctrico, que nem precisava vir a terra.
Uma das muitas versões cinematográficas é O Abismo Negro (1979 sempre com enorme sucesso. Na continuação da saga submarina Nemo é confundido com um monstro marinho. O sábio Aronnax imagina que se trata de um narval, um cetáceo gigantesco, da Antiguidade e  que provoca desastres em navios e embarcações em todos os oceanos.. Em face aos prejuízos causados pela criatura, é decretada sua caça. .
  O real ausentar-se por uma antevisão metafórica, e fantástica, carregada de símbolos e de mitologias cifradas que nem sempre são fáceis de descobrir. O seu interesse passa por descrições transportando nas aventuras, páginas anedóticas, entrando no fantástico e maravilhoso. Além de mostrar conhecimentos rigorosos e científicos realiza uma subversão do real com a construção do seu universo fantástico. A cada passo a ruptura do familiar transfigura-se em experiências vivenciais em que jogam com antecipações de mundos ainda no futuro.
  A literatura, como mercadoria, encontra no mercado juvenil e popular o maior êxito. Verne lutou sempre por tornar-se um “estilista” com obras científicas e mais profundas, que procurava outro público. Apesar da sua insistência de “estilista” a sua obra antecipadora prevê os acontecimentos do aquecimento global e o riscos da destruição marítima sem respeito pela Natureza. Jacques-Yves Cousteau, famoso admirador seu, tornou a  oceanografia mundialmente conhecida por suas viagens de pesquisa na continuação de Náutilos no seu Calypso.

 

Bibliografia consultada:
https://en.wikipedia.org/wiki/Twenty_Thousand_Leagues_Under_the_Seas
https://www.britannica.com/biography/Jules-Verne  27-8-21
https://fr.wikipedia.org/wiki/Jules_Verne, Style et_structure_narrative´
Furtado, Filipe, A construção do fantástico na narrativa, Ed. Horizonte Universitário, https://fr.wikipedia.org/wiki/Jules_Verne#Biographie   4.9.21 .
Le Lay. Colette Jules Verne, Un lanceur d’alerte dans le meilleur des mondes, L’Harmattan, coll. Histoire, textes, sociétés , 2019
Marcetteau-Paul. “Jules Verne écrivain”. Nantes. Coiffard & Joca Seria. 2000
Martin, Charles-Noël, Édition Reencontre.Les œuvres de Jules Verne, 1969,Horizonte, 1980,
Yann Etienne  Jules Verne, Voyage dans les mondes connus et inconnus : Jules Verne et ses fabuleuses machines à fictions. Paris, 2015

 

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