Quando o brilho das estrelas sobressai numa pandemia
Patrícia Carreiro

Quando o brilho das estrelas sobressai numa pandemia

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Communicare: tornar comum

“Ela não o ama, enquanto não lhe der doze filhos.”

 

Quando a minha filha nasceu, prematura, tive todos os cuidados e mais alguns. Não me posso queixar de praticamente nada, mas tenho noção de que muitas mulheres no mundo todo, e mesmo mais perto, não o podem afirmar.
Quando se vai para um livro a saber que fala de uma pandemia, neste caso da Gripe Espanhola, pensamos que de facto vamos ler um livro apenas sobre isso. Mas depressa percebi que estava a ler um livro sobre maternidade e sobre tristeza, muita tristeza.
Sem duvida nenhuma que viver uma pandemia em 1918, neste caso na Irlanda, nada tem a ver com viver uma em 2020, como a que agora vivemos.
É a Gripe Espanhola que a autora nos dá a conhecer através de um quarto improvisado que serve de maternidade.
Julia Power é a enfermeira que, não sendo mãe, ajuda aquelas pobres e magras mulheres a terem os seus filhos nas melhores condições possíveis.
De um momento para o outro, ela vê-se sozinha e a braços com aquelas camas apertadas que acolhem uma mulher mais doente do que a outra. Mulheres que deixaram outros tantos filhos em casa, à conta dos inexperientes maridos ou de uma vizinha mais bondosa que lhes dê uma olhadela no intervalo de cuidar dos seus.
O que acontece é que estas mulheres, na sua maioria, já tinham muitos filhos e muitos poucos anos de vida, algumas mais novas que Julia, com 30 anos, que não conseguia perceber por que razão se dizia que as mulheres não amavam os seus maridos enquanto não lhes dessem doze filhos.
Pressão feminina? Orgulho masculino? Talvez. Mas aquelas mulheres, raquíticas e sem condições de ter filhos atrás de filhos, sofriam na pele e na alma as dores de partos muito difíceis e de um vírus que teimava em persistir, neste caso estamos a falar da Gripe Espanola.
É que “noutros países, as mulheres até podem tomar medidas discretas para evitar uma coisa destas, mas na Irlanda esse tipo de prática não é apenas ilegal, mas um assunto tabu.”
O que realmente me captou a atenção foi perceber que a autora consegue descrever a pandemia, a I Guerra Mundial e o mundo da maternidade quase sempre no mesmo cenário: numa sala minúscula que albergava diversas pacientes, e uma única enfermeira!
Certo dia, Julia vê entrar pela porta daquela saleta onde também se faziam partos um milagre em forma de gente. Bridie. Uma miúda franzina e com marcas óbvias de passar dificuldades na vida desde sempre. Mas esta menina vinha salvar Julia numa dimensão que nem ela pensava ser possível…
Julia descobre a páginas tantas que Bridie viveu num lar, numa casa fria de emoção e que servia apenas de albergue para quem mais nada tinha. Por isso, a esta nossa personagem principal, “soa-[lhe] subitamente perverso alguém afirmar que cresceu num lar, nunca tendo tido verdadeiramente um lar.”
Julia aprendeu a dor de perder filhos através daquelas mulheres e a esperança das mesmas em ir para casa encontrar os outros filhos que tanto a esperavam com mais um montinho de vida nos braços.
Ela não sabia o que era ser mãe, mas cuidava do irmão, um retornado de guerra que apenas da guerra física tinha regressado. “Ser mãe deve ser isto, uma luta constante para interpretar o desconforto do bebé. Mas, pelo menos, uma criança aprenderia mais um pedacinho a cada dia, ao passo que o meu irmão…”
Os pais de ambos já não existiam, eram só os dois, e o alento de Julia era dar uma mãozinha, ou as duas, àquelas mulheres e chegar a casa e ter sempre o irmão, com um jantar feito e com um sorriso, mesmo que com poucas palavras.
Mas a magia acontece neste livro quando um amor improvável acontece e, mesmo que pouco duradouro, nos faz perceber que os estereótipos e as barreiras sociais são mesmo só isso.
Do que vale um preconceito sob um céu estrelado e um sorriso feliz e de amor que nos lava a alma? Nada. Não vale mesmo nada.
Uma leitura a não perder, uma motivação para sermos mais resilientes nos dias que vivemos, a literatura ao serviço, uma vez mais, de uma melhor forma de viver e de ver a vida!
Obrigada por este abrir de olhos, Emma Donoghue!
Boas leituras!

 

*www.patriciacarreiro.blogspot.com

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